sexta-feira, dezembro 14, 2007

Jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (parte 1 de 3)

1) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-11-2007, proferido no processo n.º 5399/2007-6:
"O art. 1014.º do CPC regula o objecto da acção especial da prestação de contas.
O direito substantivo define a atribuição do dever da prestação de contas.
Em termos gerais, quem administra bens ou direitos alheios está obrigado à prestação de contas.
O tesoureiro, enquanto membro da Direcção de pessoa colectiva, não tem o dever da prestação de contas, com o alcance emprestado pelo art. 1014.º do CPC."

Nota - É interessante seguir o fio racional do acórdão. Importará, talvez, atentar na fundamentação da decisão, já que não conheço outra sobre matéria propriamente semelhante. Ali se escreve: "o apelado integrou a Direcção do apelante, incumbindo-lhe nesse âmbito o desempenho das funções de tesoureiro. Todavia, enquanto membro desse órgão social, o apelado actua e exprime a vontade própria da respectiva pessoa colectiva. Actua, assim, em sua representação, a quem são imputáveis os respectivos actos.
Neste contexto, facilmente se depreende que o apelado, ao administrar como tesoureiro da Direcção o património do apelante, não está a administrar bens alheios, mas bens próprios da pessoa colectiva, cuja legitimidade lhe advém da qualidade de membro da respectiva Direcção. Os actos praticados nesse âmbito, pelo apelado, não são actos próprios deste, mas antes da pessoa colectiva.
Torna-se, assim, claro que, excluída a configuração da situação de administração de bens alheios, não há fundamento para a aplicação do princípio geral da obrigação da prestação de contas, com o alcance conferido pelo disposto no art. 1014.º do CPC.
Nestas condições, não faria sentido qualquer apuramento e aprovação das receitas obtidas e das despesas realizadas, assim como a eventual condenação no pagamento do saldo que viesse a apurar-se.
Certamente, embora com um sentido muito mais amplo da prestação de contas, que ultrapassa o consagrado no art. 1014.º do CPC, o apelado não deixa de ter o dever societário de prestar contas aos restantes membros da Direcção, até para esta poder, designadamente, cumprir a obrigação estatutária de apresentação das contas, com submissão à aprovação do órgão social competente.
Aliás, como resulta da materialidade apurada nos autos, as contas do apelante, relativas aos exercícios de 1995 e 1996 (espaço temporal da pretensão jurisdicional), foram até apresentadas pela Direcção à respectiva Assembleia-Geral (8.).
Concluindo, afirma-se que o apelado, enquanto membro da Direcção do apelante, com a distribuição das funções de tesoureiro, não tem o dever da prestação de contas, com o alcance que lhe empresta o art. 1014.º do CPC.
A falta de exigência legal desse dever - importa deixar claro - não obsta, obviamente, à efectivação da eventual responsabilidade civil imputável ao respectivo tesoureiro, emergente do alegado “desvio de fundos”, desde que, evidentemente, se verifiquem os correspondentes pressupostos legais."
Para hipóteses próximas - mas não análogas - cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 26-09-1995, proferido no processo n.º 087452, do Tribunal da Relação do Porto de 08-07-2004, proferido no processo n.º 0423549, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 08-07-2004, proferido no processo n.º 3625/2004-1.



2) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 22-11-2007, proferido no processo n.º 9716/2007-6:
"O exercício da competência legal atribuída ao solicitador de execução decorre, necessariamente, sob o controlo do juiz.
Actualmente, o exequente tem apenas o ónus de indicar, no requerimento executivo, sempre que possível, os bens de que o executado é titular.
Cabe ao solicitador de execução a realização da penhora, designadamente a determinação dos bens a apreender, embora com respeito pelas normas constantes dos arts. 821.º, n.º 3, e 834.º, n.º s 1 e 2, do CPC.
O exercício funcional do solicitador de execução está balizado tanto pelo fim da execução, como pela forma seguida para o atingir, em garantia da tutela jurisdicional eficiente do direito do credor.
Por efeito do disposto, designadamente, no art. 833.º, n.º 4, do CPC, o juiz deve determinar, incluindo a solicitação do exequente, a penhora de certos bens, indicados no requerimento executivo, e também advertir o solicitador de execução, quando se justifique, para o cumprimento célere e eficaz do respectivo dever processual."

Nota - Neste caso curioso, o exequente havia nomeado um conjunto de bens à penhora. O solicitador de execução aguardava pelo resultado de algumas diligências, mas o exequente entendia que nada obstava a que se procedesse, desde logo, à penhora do recheio de um imóvel. Assim o requereu ao juiz. Este, indeferiu o requerido, entendendo que a penhora competia ao solicitador de execução, não tendo o exequente pretensão atendível no que toca à determinação da melhor forma de concretização da penhora, tendo-se concluído, na decisão anotada, que "não só o Juiz deveria ter deferido o requerimento do recorrente (com indicação genérica dos bens a penhorar), com o fundamento, designadamente, do disposto no art. 833.º, n.º 4, do CPC, sendo certo que, apesar do largo lapso de tempo entretanto decorrido, ainda não tinham sido encontrados bens penhoráveis, como também, no âmbito do controlo jurisdicional dos actos do solicitador de execução, o deveria ter advertido, seriamente, para o cumprimento cuidadoso e eficiente do seu dever processual.
Com efeito, do exame dos autos, é notório que o solicitador de execução se desinteressou, indevidamente como se viu, da indicação dos bens à penhora, feita desde logo no requerimento executivo, com a agravante de nada ter sido ainda penhorado, não obstante o largo lapso de tempo decorrido, quando a aceitação da respectiva função ocorreu em 6 de Fevereiro de 2005 e a acção foi instaurada em 23 de Janeiro de 2004. Uma tal situação não pode, de modo algum, ser tolerada.
Desta forma, na acção executiva donde emerge o presente recurso, a tutela do direito de crédito do recorrente foi, manifestamente, esquecida, com a frustração total dos justos objectivos traçados pelo legislador para a acção executiva, que, reiterando, visou “conseguir maior eficácia e consequente celeridade na administração da justiça” (extracto do preâmbulo do DL n.º 38/2003, de 8 de Março)."
Decisão esta, a meu ver, que reflecte acertadamente sobre o papel do exequente na acção executiva, entendendo-se que o solicitador de execução deve
"começar por tentar a penhora dos bens indicados, salvo se a indicação não respeitar o princípio da proporcionalidade, nos termos do n.º 1 do artigo 834.º do CPC" - Carlos Lopes do Rego, Comentários ao Código de Processo Civil, Volume II, 2.ª edição, Coimbra: Almedinam 2004, pág. 66, citado na decisão, tendo-se também decidido que "não pode a acção executiva “marginalizar” a intervenção do exequente como se, em relação ao seu objecto, se tratasse de pessoa alheia ou estranha, quando também é reconhecido, como já se aludiu, que o solicitador de execução actua por conta do exequente, como se fosse seu “mandatário”".
Gasto algumas linhas de texto nesta - aqui pouco habitual - transcrição da fundamentação, por me parecer especialmente interessante o problema por ela levantado.
Não conheço muitas decisões que se debrucem especificamente sobre este problema - circunstância a que não será alheia a relativa novidade do actual regime da acção executiva, nesta parte, e a lentidão da sua tramitação, habitualmente -, mas existe uma outra, também do Tribunal da Relação de Lisboa, que trata de um problema aproximado (mas não idêntico), em termos não inteiramente coincidentes. Aliás, por coincidência, o relator da decisão anotada formula ali uma declaração de voto no sentido de se manter fiel à linha traçada no acórdão que relatou - cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2007, proferido no processo n.º 8277/2007-6, a que aqui se fará referência de seguida.



3) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2007, proferido no processo n.º 8277/2007-6:
"No novo regime executivo abandonou-se a tradicional exigência de nomeação de bens à penhora, por parte do exequente, que agora só deve, "sempre que possível" indicar os bens do executado, bem como os ónus e encargos que sobre os mesmos incidam (art. 810º n° 3 CPC).
Esta indicação só é dada na medida do possível e não vincula o agente de execução a penhorar os bens indicados, tendo a liberdade de, em vez deles, penhorar outros (art. 821 n° 3, 834 CPC), podendo o agente de execução proceder a consulta não só do registo informático de execução, como das bases de dados da segurança social, das conservatórias do registo e de outros registos ou arquivos semelhantes (artigos 332° n° 2 e 833° n°1 CPC) e devendo começar pela penhora dos "bens cujo valor pecuniário seja de mais fácil realização e se mostre adequado ao montante do crédito do exequente" (art. 834° n° 1 do CPC).
Sempre o juiz da execução tem um poder que se pode sobrepor à escolha do agente de execução, desde que razões fundadas aconselhem um afastamento da conduta-padrão desenhada pelo legislador como regime regra."

Nota - A decisão contou com uma declaração de voto (veja-se a nota ao acórdão anterior, em particular o seu último parágrafo).


4) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2007, proferido no processo n.º 9503/2007-6:
"O princípio da extinção do poder jurisdicional, que assegura a estabilidade da decisão jurisdicional, comporta certos desvios.
Proferido despacho a declarar extinta a instância, o juiz está ainda obrigado a conhecer do requerimento no qual, tacitamente, se invoca o cometimento de uma nulidade processual, que, sendo procedente, implicará a anulação do despacho, nos termos do n.º 2 do art. 201.º do CPC."

Nota - Parece ser esta a melhor solução a seguir, caso a arguição da nulidade seja tempestiva.
No sentido segundo o qual enquanto não se aprecia a nulidade não ocorre trânsito em julgado, cfr. Lebre de Freitas / Montalvão Machado / Rui Pinto,
Código de Processo Civil anotado, vol. 2.º, Coimbra: Coimbra Editora, 2001, pág. 664 e s., e jurisprudência aí citada (chamando os autores a atenção para a circunstância de a jurisprudência não ser unânime, neste ponto).


5) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2007, proferido no processo n.º 7646/2007-8:
"O Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a Menores garante, nos termos da lei face ao incumprimento, não apenas as prestações vincendas após notificação do Tribunal mas ainda as prestações vencidas, não se mostrando afastada a regra constante do artigo 2006.º do Código Civil nem pela Lei n.º 75/98, de 19 de Novembro nem pelo Decreto-Lei n.º 164/99, de 13 de Maio."

Nota - Sobre a matéria citada existem três correntes jurisprudenciais diferentes - cfr. este post anterior e ainda este outro, em anotação ao acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 4961/2007-8, bem como a jurisprudência citada nos ditos textos, e ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 5455/2007-6.


6) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 15-11-2007, proferido no processo n.º 7587/2007-8:
"Com a Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril, a competência territorial para as acções destinadas ao cumprimento de obrigações passou a pertencer imperativamente ao tribunal da COMARCA do réu sendo a incompetência relativa de conhecimento oficioso.
Foi igualmente vedada a possibilidade de as partes afastarem, por convenção, as regras de competência territorial nesses casos, por força do disposto no nº1 do artigo 100º do C.P.C.
Através da Lei n.º 14/2006 visou o legislador um triplo objectivo: o descongestionamento dos tribunais, a racionalização dos meios e custos envolvidos e a salvaguarda e tutela dos consumidores endividados, estabelecendo uma proximidade territorial em benefício claro da defesa dos direitos destes.
Defender a vigência do artigo 21.º do Decreto-lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro, para as acções de resolução do contrato (seja de compra e venda, seja de mútuo) seria contrariar os citados objectivos fundamentais do legislador, impedindo os resultados projectados
O artigo 212.º do Decreto-lei n.º 54/75 foi tacitamente revogado pela Lei nº 14/2006, de 26 de Abril."

Nota - A questão aqui apreciada não é pacífica na jurisprudência (e, aliás, o acórdão em análise não foi tirado por unanimidade, reflectindo assim essa divisão), como tenho vindo a assinalar. Aproveito para actualizar as notas anteriores.
A decisão anotada diverge de outras já analisadas neste blog, designadamente os acórdãos do mesmo tribunal de 15-02-2007, proferido no processo n.º 1180/2007-8, e de 06-03-2007, proferido no processo n.º 7958/2006-1, (cfr., respectivamente, aqui e aqui), mas está em linha com os acórdãos da mesma Relação de 22-03-2007, proferido no processo n.º 1935/2007-8 (anotado aqui), de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4386/2007-7 (referido no ponto "2)" deste post), de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4117/2007-7 (referido no ponto "1)" deste post), e de 12-07-2007, proferido no processo n.º 6140/2007-7 , e ainda com a decisão individual do mesmo Tribunal da Relação de Lisboa de 16-07-2007, proferida no processo n.º 6604/2007-7 (referidos neste post).
São estas as nove decisões que conheço sobre a matéria em causa (como também já referi, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 6952/2006-8, embora, à primeira vista, trate de questão semelhante, ocupa-se de outra: a inaplicabilidade do regime do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02 ao mutuante que tem a seu favor inscrita registo de reserva de propriedade de veículo automóvel).
Embora a argumentação que se encontra nos acórdãos que seguem a linha das decisões anotadas seja interessante, não me convence ao ponto de considerar que o legislador pretendeu revogar a lei especial, continuando, pois, na linha dos outros dois acórdãos, convencido da vigência do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02, que não terá sido revogado pela Lei n.º 14/2006 (ou seja, entendo que a revogação da lei geral não implica a revogação da lei especial, por entender que não há motivos evidentes para concluir que foi outra a vontade do legislador).
Mantenho, por isso, alguma dúvida, quanto a esta matéria. A propósito, note-se o relator do citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4386/2007-7 (desembargador Abrantes Geraldes) alterou ali a posição anteriormente assumida, enquanto adjunto, em acórdão anterior (não publicado), espelhando assim, de certo modo, as dificuldades de interpretação dos preceitos em causa.

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