terça-feira, março 06, 2007

Jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (parte 1 de 2)

1) Acórdão de 15-02-2007, proferido no processo n.º 4688/2006-8:
"Justifica-se a isenção de penhora de 1/ 6 do vencimento da executada pelo período de uma no ao abrigo do disposto no artigo 824.º/3 do Código de processo Civil considerando que a quantia disponível da executada e agregado familiar de 4 pessoas é de € 271,99 o que coloca cada uma das pessoas com disponibilidade de € 68 ao nível da sobrevivência
O interesse do credor na satisfação do crédito proveniente de mútuo para aquisição de veículo automóvel não pode sobrepor-se às razões que estão na base da referida isenção temporária que são razões de protecção e respeito pela dignidade humana.
A falta de ponderação de muitas pessoas que adquirem bens não essenciais sem primeiro assegurar a satisfação das necessidades básicas tem o seu contraponto no frenético aliciamento ao consumo promovido por empresas que vivem e prosperam precisamente à custa desse aliciamento".

Nota - Relaciona-se directamente com esta matéria o recente acórdão do Tribunal Constitucional n.º 657/2006, de 28 de Novembro, no qual não se julgou incontitucional a norma que resulta da conjugação do disposto na alínea a) do n.º 1 e do n.º 2 do artigo 824.º do Có­digo de Processo Civil (na redacção dada pelo Decreto‑Lei n.º 180/96, de 25 de Setembro), na interpretação de que permite a penhora de qualquer percentagem no salário de executados quando tal salário é inferior ao salário mínimo nacional ou quando, sendo superior, o remanescente disponível para os mesmos, após a penhora, fique aquém do salário mínimo nacional", considerando que o salário mínimo se refere ao "ao mínimo que a ideia de dignidade e valor do trabalho" e não ao mínimo de dignidade da pessoa humana. Esta decisão do Tribunal Constitucional contou, porém, dois votos de vencido, apoiados na declaração do conselheiro Araújo Torres, que entende ser tal interpretação inconstitucional "por violação do princípio da dignidade humana, de­corrente do prin­cípio do Estado de direito".
Esta decisão do Tribunal Constitucional prevalecerá sobre outras, dos tribunais judiciais, que apreciaram a mesma questão de inconstitucionalidade (por exemplo, entre muitos, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 23-05-2006, proferido no processo n.º 1579/2006-1 e do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-02-2006, proferido no processo n.º 3550/05). Note-se, porém, o seguinte: (i) daquela decisão do Tribunal Constitucional, não resulta ser constitucionalmente legítima qualquer penhora que afecte o salário em termos que impliquem a sua redução a montante inferior ao salário mínimo, pois dela decorre que haverá hipóteses em que se fere o limiar da dignidade humana, havendo margem para uma apreciação caso a caso; e (ii) aquele juízo de inconstitucionalidade não se confunde com a melhor interpretação a dar às regras do CPC.
Nos autos, ficou provado que
"a executada, por dificuldades monetárias, deixou de frequentar as consultas de psiquiatria de que carece e que, pelas mesmas razões, por vezes nem pode tomar a medicação que lhe é necessária".


2) Acórdão de 15-02-2007, proferido no processo n.º 6382/2006-8:
"Os preferentes que adquiriram imóvel em compropriedade são parte legítima para , nessa qualidade de adquirentes, serem demandado na acção especial para exercício de preferência a que alude o artigo 1465.º do Código de Processo Civil instaurada por preferente não adquirente.
É que a legitimidade dos compradores do prédio não se afere pelo seu interesse em exercer a preferência, mas pelo seu interesse em se assegurar que sejam eles os licitantes a quem é atribuído o direito de preferência.
Os proprietários não têm de ser demandados pois não lhes cabe intervir no processo de licitação".

Nota - Em sentido concordante, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29-04-2003, proferido no processo n.º 03A706.
Para além do assento n.º 2/95, de 1 de Fevereiro (in DR, I Série, de 20-04-2995), citado na decisão, haverá algum interesse na análise do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25-09-2003, proferido no processo n.º 02B3986. Sobre a relação entre a acção especial prevista no artigo 1465.º do CPC e a acção de preferência, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 03-02-2004, proferido no processo n.º 03A4351, e de 19-02-2004, proferido no processo n.º 03A4373, do Tribunal da Relação do Porto de 03-02-2003, proferido no processo n.º 0253146, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 19-01-1995, proferido no processo n.º 0072466, todos considerando que o recurso ao processo do artigo 1465.º do CPC é apenas facultativo. Em sentido oposto, encontra-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 21-10-1980, proferido no processo n.º 0216114, que, todavia, já não servirá de apoio seguro à tese contrária.



3) Acórdão de 15-02-2007, proferido no processo n.º 1180/2007-8:
"Lei geral não derroga lei especial que já exista a não ser que o faça expressamente excepto se outra for a intenção inequívoca do legislador (artigo 7.º do Código Civil).
Na fixação da palavra “ inequívoca” deve o intérprete ser particularmente exigente.
A existência de intenção inequívoca do legislador deve assentar em referência expressa na própria lei ou, pelo menos, num conjunto de vectores incisivos que a ela equivalham, recorrendo-se a uma menção revogatória clara, do género, “ são revogadas todas as leis em contrário, mesmo as especiais”.
Não se verificando nenhuma das invocadas situações não se pode considerar revogado o artigo 21º do Decreto-Lei nº 54/75, de 12 de Fevereiro pelo artigo 74.º do Código de Processo Civil com a redacção dada pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril".

Nota - Tanto quanto conheço, esta é a primeira decisão com texto integral publicado a analisar directamente este problema, ou seja: se as alterações das regras de competência decorrentes da Lei n.º 14/2006 prevalecem sobre a regra de competência do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02, que contém o regime da reserva de propriedade de veículo automóvel.
O acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 6952/2006-8, embora, à primeira vista, trate de questão semelhante, ocupa-se de outra: a inaplicabilidade do regime do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02 ao mutuante que tem a seu favor inscrita registo de reserva de propriedade de veículo automóvel.



4) Acórdão de 15-02-2007, proferido no processo n.º 4847/2006-7:
"A acção de interdição por anomalia psíquica pode findar, decretando-se a interdição, se o interrogatório e exame do requerido fornecerem elementos suficientes e a acção não tiver sido contestada (artigo 952.º/1 do Código de Processo Civil).
Se assim não suceder, o processo deve prosseguir, não devendo a acção ser julgada improcedente (artigo 952.º/2 do C.P.C.).
E por maioria de razão deve prosseguir a acção quando decorre do relatório pericial sofrer a requerida de perturbação afectiva bipolar sendo previsível que em situações de descompensação clínica (maníaca e eventualmente depressiva) não possua capacidade para reger sua pessoa e bens".


5) Acórdão de 13-02-2007, proferido no processo n.º 446/2006-7:
"Só o património social responde para com os credores pelas dívidas da sociedade (artigo 197º,nº3 do Código das Sociedades Comerciais) não sendo, por isso, penhorável o capital social caso em que se estaria a violar o princípio da intangibilidade do capital".

Nota - Salvo o devido respeito por opinião contrária, a decisão está correcta mas a sua fundamentação não me parece a melhor.
Bem me parece ter andado o tribunal de primeira instância ao rejeitar a penhora do capital social simplesmente porque o capital social não é nenhuma coisa ou direito penhorável. Esta é a única e verdadeira razão da sua impenhorabilidade.
O capital social é uma cifra, um número que representa a soma dos valores das participações sociais. Mas ele não se confunde nem com o património social, nem com as participações sociais - precisamente porque ser apenas uma cifra, não um bem ou direito.
No acórdão entendeu-se a dado passo que o capital social seriam as participações sociais - "aceitar que pudessem ser nomeadas em penhora todas as quotas sociais da sociedade, ou seja, todo o seu capital social, corresponderia na prática a reconhecer que a sociedade executada não tem qualquer outro valor patrimonial". Ora, não só não se justifica tal salto lógico (o capital social não se confunde com as participações sociais), como ainda do conceito de participação social decorre que ela não pode ser penhorada em execução movida contra a sociedade. Na verdade, participação social é o conjunto de direito e obrigações actuais e pontenciais do sócio (face à sociedade) - cfr., Coutinho de Abreu, Curso de Direito Comercial, vol. II, Coimbra: Almedina, 2002, pág. 205.
Finalmente, o princípio da intangibilidade do capital social implica uma limitação da possibilidade de distribuição de bens aos sócios, nos termos do artigo 32.º do CSC, não representando qualquer limite à penhora.

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