segunda-feira, setembro 24, 2007

Jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (parte 1 de 4)

Aqui fica a primeira de quatro partes com recolha de jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa e respectivas notas. Justifica-se esta (pouco habitual) introdução para chamar a atenção para a primeira decisão, cujos contornos são, no mínimo, inesperados.


1) Decisão individual do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferida no processo n.º 6403/2007-6:
"I. A competência dos Julgados de Paz é uma competência exclusiva e não alternativa.
II. Se a competência fosse meramente alternativa, por se tratar de um desvio à regra, justificava-se que o legislador tivesse prevenido da inexistência de obrigatoriedade de recorrer à jurisdição dos Julgados de Paz.
III. E tanto é uma competência exclusiva que o legislador estabeleceu uma norma transitória a determinar que as acções pendentes à data da criação e instalação dos Julgados de Paz prosseguissem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
IV. Esta norma não faria o menor sentido se a competência dos Julgados de Paz fosse meramente alternativa da dos Tribunais Judiciais, pois que então não haveria qualquer justificação ou fundamento para o desaforamento destas acções, para as quais eram, e continuariam a ser, competentes aqueles tribunais.
V. Não se ignora que no douto acórdão do STJ de 24.05.2007 se uniformizou a jurisprudência nos termos seguintes: “no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no art. 9º, n.º 1 da Lei n.º 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente”.
VI. Todavia, a interpretação que foi produzida no douto Acórdão uniformizador de jurisprudência, no sentido de que a competência dos julgados de paz é meramente facultativa, viola o princípio da igualdade no acesso à justiça na medida em que coloca apenas nas mãos do autor a opção pelo recurso ao tribunal ou ao julgado de paz, como lhe aprouver, ficando o réu, afinal sem alternativa nenhuma, mesmo quando entenda, quando demandado no julgado de paz, que o tribunal é que lhe oferecia as garantias de defesa de que carecia.
VII. A faculdade de opção alternativa entendida apenas em favor de uma das partes, no caso o autor, viola esta exigência de igualdade de faculdades e de meios de acção e de defesa que a lei estabelece.
VIII. A interpretação feita no mesmo aresto viola o princípio, ou regra, do processo equitativo, que é assegurado, nomeadamente, através da igualdade de armas, que impõe o equilíbrio entre as partes ao longo de todo o processo, na perspectiva dos meios processuais de que dispõem para apresentar e fazer vingar as respectivas teses e que exige a identidade de faculdades e meios de defesa processuais".

Nota - Parece que houve, nesta matéria, uma certa dificuldade em harmonizar a jurisprudência através de acórdão uniformizador.
Na verdade, o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B881 (por mim analisado aqui), com apenas um voto de vencido, uniformou jurisprudência no sentido da não exclusividade da competência dos julgados de paz:
"no actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artº 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente".
Que a Relação de Lisboa contrariasse a jurisprudência uniformizada já seria de estranhar. Mas o que torna esta situação ainda mais caricata é a circunstância de se tratar não de acórdão mas de uma decisão individual, que pressupõe o uso da faculdade prevista nos artigos 701.º, n.º 2 e 705.º do CPC, o que, por sua vez, se encontra previsto para as hipóteses em que
"a questão a decidir é simples, designadamente por ter já sido jurisdicionalmente apreciada, de modo uniforme e reiterado, ou [em] que o recurso é manifestamente infundado".
Parece-me evidente que não foi dado um bom uso às ditas normas nem feito a melhor interpretação da função dos acórdãos uniformizadores.
Contrariar um acórdão uniformizador através de decisão individual (que está pensada, entre outras hipóteses, para quando o relator apenas confirma jurisprudência uniformizada) é inusitado e, para mim, dificilmente justificável. Penso que será inédito.
Para um levantamento da jurisprudência sobre a competência dos julgados de paz antes do dito acórdão uniformizador, cfr. este post anterior.


2) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 4961/2007-8:
"Na prestação a suportar pelo Fundo de Garantia de Alimentos Devidos a menores incluem-se também as prestações vencidas".

Nota - Sobre esta matéria, havia três correntes jurisprudenciais diferentes. Como tive já oportunidade de referir anteriormente, era possível encontrar decisões que sustentavam que a obrigação do Estado abrange as prestações já vencidas e não pagas anteriores ao pedido contra o Fundo, outras defendendo que inclui apenas as vencidas após tal pedido e, finalmente, uma terceira corrente entendia que só eram devidas as prestações que se vencessem após a decisão.
Citando o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 14-12-2006, proferido no processo n.º 0636008 (exemplar, pela vontade de superar divergências doutrinais), aqui fica um levantamento de algumas delas.
"São já muito numerosas as decisões dos tribunais superiores sobre a questão do momento a partir do qual recai sobre o Fundo a obrigação de pagar a prestação de alimentos. E três correntes se têm perfilado.
Uma sustenta que a condenação abrange apenas as prestações vencidas a partir do mês seguinte à data da notificação da decisão (de que são exemplo os muitos arestos citados pelo recorrente e, além de outros, o recente acórdão do STJ, de 6.7.2006, www.dgsi.pt, proc. 05B4278); outra, para quem o pagamento, embora só se inicie no mês seguinte ao da notificação da decisão, reporta-se e abrange as prestações vencidas desde a data em que foi apresentado pedido contra o Fundo (neste sentido, Acs. RC, de 12.4.2005, proc. 265/05, e de 3.5.2006, proc. 805/06; da RG, de 1.6.2005, proc. 587/05-1 e de 11.2.2004, proc. 2269/03-2; da RE, de 30.3.2006, proc. 147/06-2, todos em www.dgsi.pt); e, uma terceira, que defende que o Fundo pode ser condenado a pagar as prestações acumuladas, já vencidas e não pagas pela pessoa judicialmente obrigada a prestar alimentos (neste sentido, Ac. da RL, de 12.7.2001 - confirmado pelo Ac. do STJ, de 31.1.2002 (revista nº 4160/01-2ª), e da mesma Relação, de 24.11.2005 e de 9.6.2005, www.dgsi.pt, procs. 9132/2005-6 e 3645/2005-8; da RC, de 15.11.2005, www.dgsi.pt, proc. 2710/05; da RP, de 25.10.2004, 21.9.2004 e 22.11.2004, www.dgsi.pt, procs. 0454340, 0453441 e 0455508; e desta mesma Relação, de 19.9.2002, este in CJ, 2002, IV, 180, relatado pelo ora também relator)."
Prossegue o acórdão: "A divergência de decisões tem ocorrido mesmo nesta Secção da Relação do Porto. O que – há que reconhecê-lo – em nada é prestigiante para os tribunais e não deixará de causar alguma perplexidade nos menos entendidos em assuntos de justiça.
Entendeu-se, porém, agora, nesta Secção, após análise conjunta da questão, dever assumir-se uma posição consensual e uniforme, esta no sentido de que as prestações de alimentos são devidas desde a data da propositura do respectivo pedido contra o Estado (embora o respectivo pagamento só se inicie no mês seguinte ao da notificação da decisão que fixe a prestação mensal)."
A argumentação, partindo da omissão de lei reguladora do funcionamento do Fundo, passa por aplicar a regra do artigo 2006.º do CC: "os alimentos são devidos desde a proposição da acção (...)".
O acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 19-04-2007, proferido no processo n.º 173/07-2 também segue no mesmo sentido do ali decidido pela Relação do Porto.
No entanto, no acórdão agora anotado perfilha-se o entendimento segundo o qual a obrigação do Fundo abrange todas as prestações vencidas.
Assim, actualmente, o levantamento já feito pode resumir-se ao seguinte:
- no Tribunal da Relação do Porto, é relativamente estável o entendimento segundo o qual "as prestações de alimentos são devidas desde a data da propositura do respectivo pedido contra o Estado (embora o respectivo pagamento só se inicie no mês seguinte ao da notificação da decisão que fixe a prestação mensal)";
- nos restantes tribunais da Relação, continua a haver uma divisão muito grande na jurisprudência, não se apresentando ainda muito claramente uma corrente dominante.


3) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 4953/2007-8:
"Numa oposição deduzida a uma execução, tendo o oponente junto no prazo legal o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça inicial, mas por valor inferior ao devido, não tendo o requerimento de oposição sido rejeitado pela secretaria, não pode o juiz ordenar o seu desentranhamento sem dar ao oponente a possibilidade de pagar as quantias em falta, devendo este ser notificado para efectuar o seu pagamento no prazo de dez dias, com a sanção referida no nº 3 do artigo 486º-A do CPC".

Nota - Este acórdão é muito interessante, ao analisar, com muitas cautelas, o regime a que deve estar sujeito o articulado de oposição à execução.
Parte-se do princípio da equiparação do dito articulado à petição inicial (tal como a jurisprudência já vinha, de forma constante, afirmando, quanto aos embargos de executado no regime anterior - cfr os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 09-10-2006, proferido no processo n.º 0654628, do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-11-1991, proferido no processo n.º 0034371, e de 17-12-1991, proferido no processo n.º 0049961), na linha, por exemplo, do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 22-02-2007, proferido no processo n.º 0730569.
Isto conduziria, em princípio, a aplicar à oposição à execução o disposto nos artigos 467º, nº 3 e 474º, f) do CPC. No entanto (e é aqui que a argumentação do acórdão anotado se torna especialmente interessante), considerou-se que, no que toca a custas, não deveria ser assim. Citando a fundamentação,
"bem se compreende que a secretaria recuse o recebimento da petição inicial nos casos em que não tenha sido junto o documento comprovativo do prévio pagamento da taxa de justiça inicial ou do pedido de apoio judiciário nos termos da alínea f) do artigo 474º. É que tem então o autor a possibilidade de apresentar nova petição nos termos do artigo 476º, considerando-se a acção proposta na data em que a primeira petição foi apresentada em juízo. Faculta-se, assim, ao autor um prazo de dez dias para apresentar nova petição, com o documento em falta, ou, se for acaso disso, juntar apenas este documento em igual prazo. Mas esta regra não poderia ser aplicada à oposição, pois tal significaria conceder-se ao oponente (o infractor) um novo prazo de dez para deduzir oposição. A PI, sendo o primeiro articulado, com o qual se inicia a instancia, deverá merecer um tratamento diferenciado, o que já não sucede com a oposição".
Assim sendo, faria mais sentido, no que toca a custas, aplicar ao dito articulado o regime da contestação, constante do artigo 486.º-A do CPC, do qual decorre a solução constante do sumário acima transcrito.
Esta solução de equiparação da oposição à contestação apenas para o dito efeito não é inédita na jurisprudência, encontrando-se, por exemplo, nos acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 16-04-2007, proferido no processo n.º 0750244, do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-11-2006, proferido no processo n.º 6366/2006-2 (considerando este entendimento "admissível"), e do Tribunal da Relação de Guimarães de 08-03-2007, proferido no processo n.º 2564/06-2. O acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 09-10-2006, proferido no processo n.º 0654628, manteve-se, nesta matéria, pela equiparação da oposição à petição inicial, embora ali se tenha afirmado
"que não repugnava, para efeitos de pagamento de taxa de justiça, equiparar o opoente antes ao R.. As razões que levaram a fixar um regime diferente para o R., nesta matéria, parece valerem igualmente para o opoente à execução".


4) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 358/2007-8:
"Autorizada pelo senhorio a realização de obras no local arrendado, na sequência de solicitação dos inquilinos, referindo ele que os arrendatários “ podiam fazer as obras desde que não lhe pedissem dinheiro”, provando-se ainda que o senhorio viu as obras depois da sua conclusão, não podem, ele ou aqueles que lhe sucederam na posição contratual, deixar de ser condenados como litigantes de má fé pela acção de despejo movida contra os arrendatários com fundamento em obras não autorizadas susceptíveis de preencher a previsão constante do artigo 64.º/1, alínea d) do R.A.U.".

Nota - Aqui, não estava em causa a situação de facto em que assentava a má fé (que poucas dúvidas suscitará), mas apenas saber se os sucessores da parte que praticou os factos integrantes da má fé devem ser pessoalmente responsabilizados nessa sede.
Quanto a este ponto, considerou que os sucessores "herdaram" a má fé processual do autor.
Tenho algumas dúvidas quanto a uma posição tão simplificada. A sanção por litigância de má fé não deixa de ter uma certa natureza pessoal. É a consequência de carácter sancionatório por um comportamento processual culposo.
Não me parece de subscrever sem mais uma transposição automática da "culpa" da parte para os seus sucessores, havendo que procurar, a meu ver, averiguar em que momento processual foram habilitados os sucessores e quais os meios processuais que, em tal momento, tinham à sua disposição para contrariar a posição (eventualmente consubstanciadora de má fé) que a parte habilitada já tinha marcado no processo. Como vem lembrando a jurisprudência,
"os tribunais devem ser prudentes na condenação por litigância de má fé, apurando-se caso a caso - apreciação casuística onde deverá caber a natureza dos factos e a forma como a negação ou omissão foram feitas" (citação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 15-10-2002, proferido no processo n.º 02A2185).

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