quarta-feira, setembro 26, 2007

Jurisprudência do Tribunal da Relação de Lisboa (parte 3 de 4)

1) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 4382/2007-6:
"O arbitramento de reparação provisória constitui um procedimento cautelar (nominado) que tem como objectivo, reparar provisoriamente o dano decorrente de morte ou lesão corporal como também aqueles em que a pretensão indemnizatória se funde em dano susceptível de por seriamente em causa o sustento ou habitação do lesado, sendo que o seu regime jurídico se encontra previsto nos arts. 403º a 405º do CPCivil.
O preceituado no art. 403º, nº 2, não deve corresponder necessariamente à medida da protecção alimentícia, do mesmo modo que não pode cingir-se aos quantitativos necessários para compensar a perda de poder económico para provimento do sustento e da habitação.
Por contraposição com o nº 4, o conceito de necessidade a que se reporta o nº 2 é mais amplo e pode envolver, de acordo com o normal padrão de vida do lesado, componentes ligadas à diminuição do bem-estar, da educação ou do vestuário, que não apenas as atinentes à capacidade de almejar o seu próprio sustento ou de prover à sua habitação.
E compreende ainda não apenas as despesas do próprio lesado como as dos familiares dele dependentes, cabendo ao julgador, na fixação da renda provisória, ter em conta as regras do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida, ou seja com recurso à equidade".

Nota - As decisões sobre o arbitramento de reparação provisória despertam-me sempre alguma curiosidade, por fazerem apelo àquilo que, no sumário acima transcrito, se designa por "regras do bom senso prático".
Por regra, não transcrevo grandes segmentos da fundamentação, mas considero que, neste caso, alguns pontos merecem destaque.
O acórdão começa por analisar se o tribunal de primeira instância deveria ter dado como provado um rendimento mensal do requerente de €4000. A fundamentação da decisão,nesta parte tem algum interesse:
"Ora, encontrando-se junto aos autos documentos emitidos pela requerida comprovativos de que aquela, na qualidade de responsável pelos danos derivados do acidente, aceitara pagar à requerente, desde a data do acidente até Setembro de 2006, como indemnização pela perda dos rendimentos derivados do trabalho a quantia mensal de € 3500, tem-se por aceitável, mas apenas em sede da dita prova sumária legalmente exigida no âmbito do presente procedimentos cautelar, a presunção (judicial) de que os rendimentos da requerente seriam, em média da ordem do valor pago, já que não é crível que a seguradora tivesse aceite pagar aquele montante sem se certificar minimamente do valor dos rendimentos mensais auferidos pela requerente à data do acidente.
E embora se entenda que, não obstante tratar-se de facto negativo, a prova de que a requerente não tinha quaisquer outros rendimentos, competia à autora, acompanha-se o entendimento daqueles que, nestes casos, consideram dever haver uma menor exigência na prova (cfr. Antunes Varela, RLJ., ano 116, p.338 e 341), admitindo-se mesmo que a parte contrária deva, num espírito de colaboração leal, perante uma alegação consistentemente feita, desenvolver algum esforço de contraprova e não limitar-se a uma pura impugnação.
Daí que, contrariamente ao defendido pela agravante se entenda que, no caso e no tipo de processo em causa, não é de alterar a matéria de facto tida como indiciariamente provada, designadamente o segmento relativo ao valor dos rendimentos médios mensais auferidos pela requerente na data do acidente".
Mais adiante, quanto à determinação do montante da renda, escreve-se o seguinte (aproveito para fazer a ligação à jurisprudência citada):
"Como afirma Abrantes Geraldes, em Temas da Reforma do Processo Civil, IV vol., p. 136 “(…) o preceituado no art. 403º, nº 2, não deve corresponder necessariamente à medida da protecção alimentícia, do mesmo modo que não pode cingir-se aos quantitativos necessários para compensar a perda de poder económico para provimento do sustento e da habitação.
“Por contraposição com o nº 4, o conceito de necessidade a que se reporta o nº 2 é mais amplo e pode envolver, de acordo com o normal padrão de vida do lesado, componentes ligadas à diminuição do bem-estar, da educação ou do vestuário, que não apenas as atinentes à capacidade de almejar o seu próprio sustento ou de prover à sua habitação”.
E compreende ainda não apenas as despesas do próprio lesado como as dos familiares dele dependentes, cabendo ao julgador, na fixação da renda provisória, “ter em conta as regras (…) do bom senso prático, da justa medida das coisas e da criteriosa ponderação das realidades da vida”, ou seja com recurso à equidade “que tanto pode servir para moderar o quantitativo como para aumentá-lo, de acordo com as circunstâncias” do caso (autor e obra citada e acórdão do STJ, de 10.02.98, CJ/STJ, tomo 1, p. 65, aí citado, p. 150 e 151)
E assim tem entendido também grande parte da jurisprudência (v. por todos, para além do acórdão do STJ citado, também por exemplo, o acórdão da R. do Porto, de 16.01.2006 em www.dgsi.pt).
Neste contexto normativo e vistos os factos apurados, designadamente os encargos da requerente e a composição do seu agregado familiar, conclui-se que a quantia arbitrada pelo tribunal recorrido, correspondente a cerca de 50% do valor médio tido por auferido por aquela, é, não obstante o valor sensivelmente inferior das despesas provadas da requerente, a adequada para a suprir a “situação de necessidade” da requerente, decorrente do acidente de que foi vítima".
Este entendimento, relativamente generoso, das regras para apurar o montante da renda, à luz do n.º 4 do artigo 403.º do CPC parece ser o mais ajustado à tutela dos interesses que a norma visa proteger. O valor elevado da renda reflecte, de certo modo, o valor, também ele elevado, das normais despesas de sustento e habitação de um agregado familiar nos dias de hoje. Cfr. ainda, neste sentido, o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 04-03-2002, proferido no processo n.º 0250036.
Sobre o problema da revisão do valor da renda, através da instauração de novo procedimento de arbitramento de reparação provisória, cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 04-07-2007, proferido no processo n.º 0752894, e de 16-11-1999, proferido no processo n.º 9921223.
Sobre os efeitos da improcedência, em primeira instância, da acção indemnizatória para o procedimento de arbitramento a ela apenso mas ainda não decidido, cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 26-04-2007, proferido no processo n.º 0731623 e de 17-10-2006, proferido no processo n.º 0625119. Para a hipótese de a decisão do procedimento não ter ainda sido proferida, cfr. os acórdãos do Tribunal da Relação do Porto de 06-03-2007, proferido no processo n.º 0720398, e do Tribunal da Relação de Lisboa de 30-01-2007, proferido no processo n.º 6905/2006-7.
Sobre a relação entre os números 1 e 4 do artigo 403.º do CPC, cfr. o já citado acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 17-10-2006, proferido no processo n.º 0625119.
Quanto à possibilidade de reparação natural no arbitramento de reparação provisória, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 05-12-2005, proferido no processo n.º 0554946.
Considera que a dita providência não se estende a pessoas colectivas o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-12-2003, proferido no processo n.º 0336087.
Sobre a inviabilização, pelo requerente, do cumprimento das obrigações do requerido, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 18-01-2007, proferido no processo n.º 9721/2006-8. Quanto à culpa do requerente na produção do dano, veja-se o acórdão da mesma Relação de 17-03-1998, proferido no processo n.º 0071061.
Pela aplicabilidade da providência, nos termos previstos no n.º 4 do artigo 403.º do CPC, às hipóteses de responsabilidade contratual (designadamente em contrato de trabalho) pronuncia-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-11-2004, proferido no processo n.º 9554/2003-4. Contra, o acórdão da mesma Relação de 05-02-1998, proferido no processo n.º 0070462.
Sobre a responsabilidade do Fundo de Garantia Automóvel na reparação provisória, cfr. o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-06-2007, proferido no processo n.º 4197/06.8TJCBR-A.C1.



2) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 4297/2007-7:
"Numa acção em que é demandado apenas um réu, o facto de a carta registada com aviso de recepção remetida para citação desse réu ter sido endereçada também em nome do marido, que não era demandado, não implica a nulidade da citação, por preterição de formalidade prescrita na lei (artigo 198.º/1 do Código de Processo Civil) verificando-se que a defesa da ré demandada não ficou prejudicada visto que ela recebeu a carta que lhe era dirigida e assinou o aviso de recepção.
De facto a ré teve oportunidade de tomar contacto com a petição inicial e, assim, poder defender-se, não sendo, portanto, aquele lapso causal relativamente à entretanto alegada ausência de conhecimento do acto de citação por, segundo a ré referiu, ter entregue a carta ao marido".

Nota - Parece-me ajustada a decisão, embora conte com um voto de vencido (da relatora original do processo).
Convence-me o entendimento, constante da fundamentação, segundo o qual, neste caso concreto, os erros da secretaria
"não são (...) causais relativamente à alegada ausência de conhecimento do acto de citação. Não foi em virtude destes erros que a Ré deixou de poder ler a petição inicial e todo o expediente que recebeu em mãos, bem como de compreender o conteúdo do acto que lhe foi transmitido – com a importância conferida pela chancela consistente na sua assinatura, aposta no aviso de recepção relativo a uma carta vinda do Tribunal Cível de Lisboa".
A verdade é que a carta era dirigida também à ré (embora não só a ela) e a falta de conhecimento ser-lhe-á imputável, pelo menos a título de negligência, ao não procurar conhecer o seu conteúdo, apesar de a ter recebido pessoalmente.
Note-se que a citação pessoal (realizada pela
"entrega ao citando de carta registada com aviso de recepção" - cfr. artigo 233.º, n.º 2, al. a) do CPC), se considera realizada na data em que é assinado o aviso e que a falta de citação só poderá ser invocada quando o não conhecimento do seu conteúdo não é imputável ao citando (cfr. artigo 195.º, n.º 1, al. e) do CPC).


3) e 4) Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2007, proferido no processo n.º 6140/2007-7 ("O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro deve considerar-se tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril no que respeita à matéria atinente à competência territorial"), e decisão individual do Tribunal da Relação de Lisboa de 16-07-2007, proferida no processo n.º 6604/2007-7 ("O artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75, de 12 de Fevereiro deve considerar-se tacitamente revogado pela Lei n.º 14/2006, de 26 de Abril").

Nota - Juntei estas duas decisões por serem praticamente idênticas no seu conteúdo. A questão em causa divide a jurisprudência, tendo sido já tratada aqui no blog. Actualizo, pois, as notas anteriores.
Elas divergem de outras já analisadas neste blog, designadamente os acórdãos do mesmo tribunal de 15-02-2007, proferido no processo n.º 1180/2007-8, e de 06-03-2007, proferido no processo n.º 7958/2006-1, (cfr., respectivamente, aqui e aqui), mas estão em linha com os acórdãos da mesma Relação de 22-03-2007, proferido no processo n.º 1935/2007-8 (anotado aqui), de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4386/2007-7 (referido no ponto "2)" deste post), e de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4117/2007-7 (referido no ponto "1)" deste post).
São estas as sete decisões que conheço sobre a matéria em causa (como também já referi, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 6952/2006-8, embora, à primeira vista, trate de questão semelhante, ocupa-se de outra: a inaplicabilidade do regime do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02 ao mutuante que tem a seu favor inscrita registo de reserva de propriedade de veículo automóvel).
Embora a argumentação que se encontra nos acórdãos que seguem a linha das decisões anotadas seja interessante, não me convence ao ponto de considerar que o legislador pretendeu revogar a lei especial, continuando, pois, na linha dos outros dois acórdãos, convencido da vigência do artigo 21.º do Decreto-Lei n.º 54/75 de 12/02, que não terá sido revogado pela Lei n.º 14/2006 (ou seja, entendo que a revogação da lei geral não implica a revogação da lei especial, por entender que não há motivos evidentes para concluir que foi outra a vontade do legislador).
Mantenho, por isso, alguma dúvida, quanto a esta matéria. A propósito, note-se o relator do citado acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 29-05-2007, proferido no processo n.º 4386/2007-7 (desembargador Abrantes Geraldes) alterou ali a posição anteriormente assumida, enquanto adjunto, em acórdão anterior (não publicado), espelhando assim, de certo modo, as dificuldades de interpretação dos preceitos em causa.

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