terça-feira, maio 20, 2008

Jurisprudência do Tribunal Constitucional * O apoio judiciário (a propósito do acórdão do TC n.º 159/2008)

A Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, tinha por fim fixar os critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica para a concessão da protecção jurídica.
Desfigurada (felizmente) através de uma revogação quase total pela Lei n.º 47/2007, a memória da sua aplicação não traz saudades. A extrema e absurda rigidez dos critérios de apreciação da insuficiência económica dos requerentes de protecção implicou verdadeira negação de justiça - e digo-o por conhecimento próprio.
Neste blog (ver aqui), escrevi, há cerca de ano e meio: "
É, pois, importante lembrar constantemente, enquanto a lei estiver em vigor, que são injustos os resultados a que conduz, que são absurdos e irrealistas os pressupostos de que parte e, acima de tudo, que representam um sinal indesculpável de desrespeito, por parte do Estado, por todos - repito: todos! - os direitos que qualquer pessoa carenciada tenha que exercer judicialmente."
Com muito agrado tomei conhecimento, mais tarde, do acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/2006, de 28 de Novembro, no qual se julgou "inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento", que comentei aqui.
Após tal decisão, foi publicado, em sentido aproximado, o acórdão n.º 127/2008, no qual se julgaram inconstitucionais por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artigo 20.º, nº 1, da C.R.P., "as normas constantes dos artigos 6.º a 10.º, da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, e do Anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, interpretadas no sentido de que determinam que seja considerado, para efeitos do cálculo do rendimento relevante do requerente do benefício de apoio judiciário, o rendimento do seu agregado familiar, nos termos aí rigidamente impos­tos, sem permitir em concreto aferir da real situação económica do requerente, em função das suas despesas concretas", como se havia também concluído nos acórdãos números 46/2008, n.º 125/2008 e n.º 126/2008.

O Tribunal Constitucional esteve em vias de apreciar novamente o regime da Portaria n.º 1085-A/2004 no acórdão n.º 224/2008, mas acabou por não conhecer do objecto do recurso.

Na sequência de tudo isto, fiquei curioso com o acórdão do Tribunal Constitucional que hoje foi publicado na II Série do Diário da República, sobre a mesma Portaria, embora se ocupe de assunto diverso do tratado pelo jurisprudência já citada.
Dir-se-á que a Portaria representa tema de reduzido interesse, por tal diploma já não se encontrar em vigor. O interesse justifica-se, porém, não só em virtude de todos os processos pendentes em que ela se aplicou (e em alguns pode ter-se levantado o problema da sua constitucionalidade), mas também para lembrar os erros do que passou, e suas consequências, para que, num futuro próximo, não se repitam.

Vejamos, então.
O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 159/2008, publicado no
D.R. n.º 96, Série II de 2008-05-19, não julgou inconstitucionais as normas constantes do anexo à Lei n.º 34/2004, de 29 de Julho, e dos artigos 6.º a 10.º da Portaria n.º 1085-A/2004, de 31 de Agosto, na interpretação segundo a qual o valor da acção não releva na apreciação da situação de insuficiência económica para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário, nos casos em que é reconhecido o direito ao benefício do apoio judiciário, na modalidade de pagamento faseado de taxa de justiça e demais encargos com o processo.
O problema por ele apreciado não é inteiramente novo. Foi já tratado no acórdão n.º 36/2008, que irei referir adiante.
O sistema de proporcionalidade das custas em relação ao valor da acção, sem qualquer limite, pode conduzir - bem o sabemos - a resultados práticos por vezes preocupantes.
O Tribunal Constitucional teve já oportunidade de julgar inconstitucionais algumas normas do Código das Custas Judiciais quando interpretadas no sentido de, em certos casos, não ser aplicado um tecto máximo para o valor devido a título de custas. Este problema, analisado nos acórdãos n.º 643/2006, de 28 de Novembro, n.º 40/2007, de 23 de Janeiro, n.º 128/2007, de 27 de Fevereiro, e n.º 301/2007, de 15 de Maio (só no acórdão n.º 40/2007, de 23 de Janeiro, é que a decisão foi unânime, pois em todos os outros houve votos de vencido), e já desenvolvido no blog, aqui, aqui e aqui, foi retomado nos acórdãos números 470/2007 e 471/2007.
No primeiro, em processo de expropriação, foi julgada inconstitucional, "por violação das disposições conjugadas dos artigos 18.º, n.º 2, e 20.º, n.º 1, da Constituição da República Portuguesa, a norma do artigo 66.º, n.º 2, do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 224‑A/96, de 26 de Novem­bro, interpretada por forma a permitir que as custas devidas pelo expropriado excedam de forma intolerável o montante da indemnização depositada, como flagrantemente ocorre em caso, como o presente, em que esse excesso é superior a € 100 000,00".
No segundo, foi julgada inconstitucional, "por violação do direito de acesso aos tribunais, consagrado no artº 20.º, da C.R.P., conjugado com o princípio da proibição do excesso, decorrente do artº 2.º, da C.R.P., a norma que se extrai da conjugação do disposto nos artigos 13.º, nº 1, 15.º, nº 1, o), 18.º, nº 2, e tabela anexa do C.C.J., na redacção do D.L. nº 224-A/96, de 26 de Novembro, na parte em que dela resulta que as taxas de justiça devidas por um processo, comportando um incidente de apoio judiciário e um recurso para o tribunal superior, ascendem ao montante global de € 123.903,43, determinado exclusivamente em função do valor da acção, sem o estabelecimento de qualquer limite máximo, e na medida em que não se permite que o tribunal reduza o montante da taxa de justiça devida no caso concreto, tendo em conta, designadamente, a natureza e complexidade do processo e o carácter manifestamente desproporcionado desse montante".

No acórdão hoje publicado, não se tratando de um problema similar ao destas últimas decisões, há algo de muito próximo: a análise dos efeitos que um valor da acção crescente tem nos custos (absolutos) a suportar pelas partes, como taxa de justiça, ainda que estas se encontrem num estado de insuficiência económica que justifique a atribuição de protecção jurídica.
A tese que obteve vencimento apoiou-se na dupla circunstância de: (i) o sistema permitir o pagamento das custas em prestações; e (ii) estar previsto um prazo de quatro anos findo o qual as prestações deixam de ser exigíveis.
Saber se estas duas cláusulas de salvaguarda permitem "salvar" o regime legal da inconstitucionalidade é algo que merecerá alguma reflexão. Para ela poderá contribuir o voto de vencido do acórdão n.º 159/2008, do conselheiro Benjamim Rodrigues, do qual destaco os seguintes segmentos:
"Deste procedimento de determinação da insuficiência está ausente qualquer consideração relativa ao montante das custas, cuja ponderação prévia influencia decisivamente a decisão do cidadão de recorrer a juízo para fazer valer os seus direitos. Trata -se, assim, de um critério normativo manifestamente inidóneo para o fim concreto em vista."

(...)
"Sustenta o acórdão que o sistema contempla soluções normativas que acautelam o perigo de pagamento de custas judiciais excessivas, enunciando-as sob cinco alíneas, bem como limitações aos pagamentos devidos por quem goza do apoio judiciário.
Todavia, aquelas soluções não reflectem qualquer ponderação relativa à capacidade de pagar as concretas custas.
Elas respeitam, antes, ao momento de “equilíbrio” entre o valor das custas e o do valor do serviço público de administração de justiça que é reclamado pela natureza de taxa do tributo que está em causa. Daí que valha para todos os sujeitos que paguem as taxas devidas pela utilização do serviço público ou seja, elas assentam na capacidade geral dos cidadãos de pagarem a taxa de justiça tida por sinalagma do valor do serviço prestado.
Por outro lado, se é certo que nos art.ºs 13.º e 16.º, n.º 2, da Portaria n.º 1085-A/2004, o legislador estabelece limites ao pagamento de custas, de que apenas beneficiam quem goza de apoio judiciário, não poderá desconhecer-se que essas custas se constituíram em função de um parâmetro material completamente diferente do que ilumina o regime de apoio judiciário.
É que no regime das custas se atende à capacidade da generalidade dos cidadãos e não à dos carenciados, mas é pela medida daqueles que estes acabam por ter de as pagar.
Quer dizer, o legislador acaba por relevar o valor da acção, mas de forma negativa.
O devedor que goze de apoio judiciário paga prestações que são determinadas apenas em função da sua capacidade geral de pagar, e sem qualquer consideração do valor das custas (e da acção), mas o esforço concreto do pagamento que é lhe é pedido fica, porém, dependente do valor das custas e, decorrentemente, da consideração de uma capacidade geral de suportar taxas que não tem.
Donde resulta que as pessoas com igual insuficiência acabam por ter de pagar montantes concretos diferentes das custas apenas porque são diferentes os valores das acções.
Depois, há que acentuar que a medida consagrada no art.º 13.º não tem o relevo que se lhe pretende atribuir: primeiro, porque, consubstanciando apenas uma suspensão dos pagamentos mensais, não se repercute no montante total das custas a pagar, e, depois, porque o sistema de pagamento faseado se acha delineado como mera garantia do Estado pelo eventual crédito futuro das custas, na medida em que as prestações a que se refere não dizem respeito às custas finais da acção mas às custas prováveis, caso o litigante as tenha de pagar à face das respectivas regras processuais."
Finalmente, atente-se num outro voto de vencido, em acórdão que tratou de problema essencialmente análogo, o n.º 36/2008, no qual escreveu o conselheiro Fernandes Cadilha: "
As custas são calculadas pelo valor do pedido inicial (artigo 5º, n.º 3, do Código das Custas Judiciais), pelo que o valor da causa acaba por influenciar o montante da taxa de justiça inicial e da taxa de justiça subsequente e, em necessária decorrência, o número de prestações a liquidar pelo beneficiário do apoio judiciário.
O valor da causa não é, por conseguinte, irrelevante, para efeito de determinar a capacidade de esforço financeiro que o requerente pode suportar, visto que não é indiferente o número de prestações que poderá ser exigível para satisfazer os encargos com o processo.
Não basta, por isso, dizer, para efeito de averiguar se existe ou não violação do direito de acesso à justiça, que o sistema de apoio judiciário permite definir a ocasional capacidade contributiva do requerente para suportar encargos judiciais, tornando-se necessário também apurar se o contributo periódico (apurado nos termos do n.º II do anexo à Lei n.º 34/2004) se poderá prolongar por um lapso de tempo mais ou menos alargado.
Não é suficiente, para o efeito, a invocação das cláusulas de salvaguarda dos artigos 16º, n.º 2, da Lei n.º 34-A/2004, de 31 de Agosto, e 13º da Portaria n.º 1083-A/2004. A primeira dessas disposições estabelece um limite temporal (quatro anos após o trânsito em julgado da decisão final sobre a causa) que é aplicável a qualquer situação de apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado e não pondera o montante global das custas em função do valor da causa. A segunda, conferindo ao interessado a faculdade de suspender o pagamento faseado quando o somatório de prestações pagas for, em dado momento, superior a quatro vezes o valor da taxa de justiça inicial, tem em conta um cálculo das custas de parte que sejam devidas a final, e não propriamente a repercussão negativa que o pagamento das ulteriores prestações possa ter na capacidade económica do interessado.
"

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