sábado, fevereiro 03, 2007

Jurisprudência constitucional - as custas de (cada) parte e os "adiantamentos" por conta da parte contrária

Já escrevi neste blog (cfr. aqui) que o sistema de custas é muito delicado e as suas constantes micro-alterações conduzem, frequentemente, a algum desequilíbrio na aplicação dos preceitos.

Dois acórdãos muito recentes do Tribunal Constitucional vieram introduzir alguma ordem na concretização prática do sistema de cobrança das custas.

Vem tudo isto a propósito de uma prática que tem vindo a ser seguida em alguns tribunais. Trata-se do seguinte: quando há transacção, com custas a meias, antes de o Réu contestar (pagando a sua taxa de justiça), alguns tribunais exigem do autor o pagamento da taxa de justiça em falta - a do réu! -, com o ónus de mais tarde tentar reaver dele tal quantia, a título de reembolso de custas de parte.

Admito que esta prática não corresponde à melhor interpretação das normas do CCJ em causa, o que deslocaria o problema das normas para o juiz que as aplicou. Tal não deixa de ser, parcialmente, verdade.
Todavia, a questão é mais profunda. A própria estrutura do CCJ leva a que o intérprete se sinta atirado para uma lógica de "cobrança necessária" a qualquer das partes, porque há algo dessa lógica na lei. "Algo" que tem que ser temperado com moderação na aplicação das normas, designadamente quando se trata de onerar uma das partes com encargos que não deve suportar, apenas para obrigá-la a transformar-se num cobrador do Estado (um estranho cobrador, que assume todos os riscos do insucesso da cobrança), no difícil mecanismo de pedido de reembolso das custas à parte contrário(*).


Analisando o problema descrito, o Tribunal Constitucional decidiu, num primeiro acórdão, (
n.º 643/2006, de 28 de Novembro), que a interpretação em causa não resultava - e não deveria resultar, sob pena de inconstitucionalidade - do conjunto das normas aplicáveis. Por isso, fazendo uso do disposto no n.º 3 do artigo 80.º da Lei do Tribunal Constitucional, fixou "para o conjunto normativo resultante da interpretação conjugada das normas dos artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1, b) e 33º-A, n.º 1, do Código das Custas Judiciais, na redacção que lhe foi dada pelo Decreto-Lei n.º 324/2003, quando aplicadas em caso de transacção homologada antes de o réu ter procedido ao pagamento da taxa de justiça inicial, a seguinte interpretação:

Em caso de transacção homologada judicialmente antes de o réu ter pago a sua taxa de justiça inicial, segundo a qual as custas em dívida são suportadas em partes iguais, tendo o autor suportado integralmente a taxa de justiça que lhe compete, por ter pago a sua taxa de justiça inicial, deverá o réu ser notificado para pagar o remanescente da taxa de justiça do processo."


No acórdão n.º 40/2007, de 23 de Janeiro, a questão repetiu-se, mas em termos ligeiramente diferentes. Por um lado, na decisão recorrida, entendeu que a exigência de pagamento das custas ao autor decorria do artigo 13.º, n.º 2 e não dos artigos 31º, n.º 1, 33º, n.º 1, b) e 33º-A, n.º 1, do CCJ (aplicados na decisão anterior). Por outro lado, a própria decisão recorrida julgou inconstitucional a aplicação daquelas normas. Tal juízo de inconstitucionalidade foi confirmado pelo Tribunal Constitucional, que julgou "inconstitucional, por violação do princípio da proporcionalidade, ínsito no princípio do Estado de direito democrático, consagrado no artigo 2.º da Constituição da República Portuguesa, a norma constante do artigo 13.º, n.º 2 do Código das Custas Judiciais, interpretada no sentido de que, no caso de transacção judicialmente homologada, segundo a qual as custas em dívida a juízo serão suportadas a meias, incumbe ao autor que já suportou integralmente a taxa de justiça inicial a seu cargo garantir ainda o pagamento de metade do remanescente da taxa de justiça, ainda em dívida, com o ónus de subsequentemente reaver tal quantia do réu, a título de custas de parte, confirmando, consequentemente, o juízo de inconstitucionalidade firmado pela decisão recorrida e negando provimento ao recurso."


(*) O mecanismo de remeter as partes para os reembolsos entre si existe em outros países. No entanto, só quem nunca entrou num tribunal e nunca se sentou com clientes antes, durante e, especialmente, depois do fim de um processo entenderá que pode, em condições normais, funcionar bem em Portugal, nos dias de hoje. A verdade é que, advogado e cliente, muitas vezes, cansados dos transtornos, esperas e litígio, não promovem a cobrança devida ou, sendo ela negada, não a executam, por não valer a pena numa consideração de custo/benefício. Dir-se-á ser isto inércia. Poderá ser, em alguns casos. No entanto, em muitos outros, trata-se apenas de mais um custo que a parte vencedora teve que suportar sem que o Estado a colocasse - verdadeiramente, como devia - em posição de não ficar lesada quando se lhe reconhece o direito que pretendeu exercer.

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