sexta-feira, janeiro 05, 2007

Jurisprudência constitucional - apoio judiciário

Já, algumas vezes, manifestei o meu desagrado quanto ao regime do apoio judiciário. Por isso, foi com satisfação que li o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 654/2006, de 28 de Novembro, que mão amiga me enviou, no qual se julga "inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º da Constituição da República Portuguesa, o Anexo à Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, de 31 de Agosto, na parte em que impõe que o rendimento relevante para efeitos de concessão do benefício do apoio judiciário seja necessariamente determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente de protecção jurídica fruir tal rendimento".

Não representando tudo o que vai mal no apoio judiciário, é já uma ajuda. Vale a pena ler a parte essencial da fundamentação, que aponta o principal "pecado" do actual regime (o da inflexibilidade na apreciação da situação económica do requerente), em termos próximos aos que aqui havia já indicado (o realçado, na citação, é meu).


"Na sequência deste diploma [Lei nº 34/2004], a concessão de protecção jurídica a quem, tendo em conta factores de natureza económica e a respectiva capacidade contributiva, não tem condições objectivas para suportar pontualmente os custos de um processo (cf. artigo 8º, nº 1, da Lei nº 34/2004) passou a depender do valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica (artigos 8º, nº 5, e 20º, nº 1, e ponto 1. do Anexo da Lei nº 34/2004), determinado a partir do rendimento do agregado familiar – ou seja, também a partir do rendimento das pessoas que vivam em economia comum com o requerente de protecção jurídica (nºs 1 e 3 do ponto 1. deste Anexo) – e das fórmulas previstas nos artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto.

A apreciação em concreto da situação de insuficiência económica do requerente de protecção jurídica passou a ter lugar a título excepcional (cf. artigos 20º, nº 2, da Lei de 2004 e 2º da referida Portaria), diferentemente do que sucedia no direito anterior (cf. artigos 7º, nº 1, 20º, nºs 1 e 2, e 23º, nº 2, do Decreto-Lei nº 387-B/87, artigos 7º, nº 1, e 20º, nºs 1 e 2, da Lei nº 30-E/2000 e modelo de requerimento de apoio judiciário para pessoas singulares aprovado pela Portaria nº 1223-A/2000, de 29 de Dezembro), relativamente ao qual é de salientar, a título exemplificativo, que o afastamento da presunção de insuficiência económica, legalmente estabelecida, dependia da circunstância de o requerente fruir outros rendimentos, próprios ou de terceiros.

Face a esta alteração, a sentença recorrida conclui que «a norma que constituía o art.º 7º n.º 1 da Lei n.º 30-E/20 de Dezembro e que era preenchida em face do caso concreto, passou a ser uma norma preenchida legislativamente. O que era antes uma norma aberta à ponderação do caso concreto passou a ser uma norma fechada, ponderando estritos aspectos económicos-financeiros, como resulta claro da adopção de uma fórmula matemática»; assinalando o Ministério Público junto deste Tribunal que aquela decisão recusa a aplicação das «normas delimitadoras e reguladoras do âmbito do apoio judiciário, na versão actualmente vigente, enquanto consideram rendimento relevante para aferir da invocada situação de insuficiência económica todos os rendimentos auferidos pelo “agregado familiar” do interessado – ou seja, pelo conjunto das pessoas que vivem em “economia comum” com o requerente de protecção jurídica, sendo tal insuficiência económica valorada, de modo rígido e tabelar, através da “fórmula matemática” contida nos artigos 6° a 10° da Portaria nº 1085-A/2004, de 31 de Agosto» (fl. 56 e s. dos autos).

4. Como o valor do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica, determinado a partir do rendimento do requerente e da avó, com quem vive e de quem recebe alimentos, e das fórmulas previstas na Portaria que fixa os critérios de prova e de apreciação da insuficiência económica para a concessão daquela protecção, levava à inserção do caso em apreço nos presentes autos na alínea c) do nº1 do ponto I do Anexo à Lei 34/2004 – concessão de apoio judiciário na modalidade de pagamento faseado previsto na alínea d) do nº1 do artigo 16º desta Lei – o tribunal recorrido desaplicou o Anexo à Lei nº 34/2004, conjugado com os artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/04, por violação do artigo 20º, nº 1, da Constituição da República Portuguesa.

Com efeito, a aplicação conjugada deste Anexo e destes artigos não garante o acesso ao direito e aos tribunais, consentindo a possibilidade de ser denegado este acesso por insuficiência de meios económicos, na medida em que o rendimento relevante para efeitos de concessão de apoio judiciário é determinado a partir do rendimento do agregado familiar, independentemente de o requerente fruir o rendimento do terceiro que integra a economia comum. Devendo destacar-se que facilmente se poderá verificar a hipótese de o requerente de protecção jurídica não fruir, de facto, o rendimento do terceiro que integra a economia comum. Para além de poder haver interesses conflituantes entre os membros da economia comum, designadamente quanto ao objecto do processo, e de o requerente de protecção jurídica poder querer exercer o direito de reserva sobre a defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos, o terceiro em causa pode não estar juridicamente obrigado a contribuir para as despesas do requerente de apoio judiciário.

Nos presentes autos, uma vez que o dever de prestar alimentos não compreende despesas relativas a taxa de justiça e honorários forenses (cf. artigos 2003º e 2005º do Código Civil e 399º, nº 2, do Código de Processo Civil e o que sobre isto se diz na decisão recorrida e nas alegações do recorrente, a fl. 59 e s.), não se pode assumir que o requerente de apoio judiciário dispõe, efectivamente, de parte do rendimento relevante para efeitos de protecção jurídica – a parte correspondente ao rendimento de quem lhe presta alimentos (a avó) –, o que consente a possibilidade de ser denegado o acesso ao direito e aos tribunais por insuficiência de meios económicos. Podendo ainda invocar-se, neste mesmo sentido, o artigo 116º, nº 1, do Código das Custas Judiciais, uma vez que em caso de execução por custas respondem apenas os bens penhoráveis do requerente de protecção jurídica e não também os bens daquele que com ele vive em economia comum; e o regime de protecção das pessoas que vivam em economia comum, previsto na Lei nº 6/2001, de 11 de Maio, já que as pessoas que integram esta economia não estão obrigadas a contribuir para despesas como as que estão em causa nos presentes autos.

Pelo que se expôs, é de concluir que a norma desaplicada pela decisão recorrida, extraída do Anexo que integra a Lei nº 34/2004, em conjugação com aos artigos 6º a 10º da Portaria nº 1085-A/2004, não garante o acesso ao direito e aos tribunais por parte daquele que carece de meios económicos suficientes para suportar os encargos que são inerentes ao desenvolvimento de um processo judicial, designadamente custas e honorários forenses."

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1 Comentários:

Blogger Nicolina Cabrita disse...

Absolutamente de acordo consigo. Este regime é completamente "cego".

Aproveito para agradecer o seu comentário de hoje (ontem). É bom saber que não sou só eu a achar que o mundo está a ficar muito estranho... :-)

Muitos cumprimentos

2/03/2007 1:15 da manhã  

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