quinta-feira, maio 31, 2007

Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça - competência dos julgados de paz

Finalmente foi proferido um acórdão uniformizador quanto à matéria da competência dos julgados de paz. Independentemente da posição que se subscreva, parece de saudar, pelo menos, a previsível pacificação numa matéria cuja incerteza se havia tornado em sério invonveniente, principalmente para os advogados e seus clientes.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B881, pronunciou-se no sentido seguinte:

"No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artº 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente".

A divergência jurisprudencial a este respeito vinha sendo acompanhada, aqui no blog, há já algum tempo. Recordo aqui o alinhamento das decisões até este acórdão uniformizador:

Pela exclusividade da competência dos julgados de paz, nas matérias que lhe são confiadas, e consequente incompetência dos tribunais judiciais alinham os acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça de 04-03-2004, proferido no processo n.º 03B3646 (neste acórdão, não se trata da questão principal, mas é tratada na parte final da fundamentação), de 05-07-2005, in CJ, 2005, II, pág. 154, de 03-10-2006, proferido no processo de agravo n.º 2396/06 (não publicado na íntegra, mas com sumário aqui), do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2006, proferido no processo n.º 0623377 (por unanimidade), de 08-11-2005, proferido no processo n.º 0525540 (por unanimidade) e de de 05-12-2006, proferido no processo n.º 0626174 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2006, proferido no processo n.º 8573/2006-8 (com um voto de vencido), de 29-06-2006, proferido no processo n.º 5726-2006-6 (com um voto de vencido que, porém, não abrange a referida questão), de 22-06-2006, proferido no processo n.º 4929/2006-6 (por unanimidade) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8989/2006-2 (por unanimidade) e de 18-01-2007, proferido no processo n.º 1047/2006-2 (por unanimidade).

Contra a exclusividade, defendendo a competência alternativa entre tribunais judiciais e julgados de paz nas matérias confiadas a estes, podem ler-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
de 23-01-2007, proferido no processo n.º 06A4032 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2006, proferido no processo n.º 3554/2006-7 (por unanimidade), seguindo e citando o acórdão do mesmo tribunal de 18-05-2006, proferido no processo n.º 3896/2006-8 (por unanimidade) e ainda, da mesma Relação, os de 14-11-2006, proferido no processo n.º 8588/2006-7 (com um voto de vencido) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8759/2006-8 (por unanimidade). Defendendo a concorrência de competência, transitoriamente, pode ler-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 4664/2006-8.

Na decisão intervieram 33 conselheiros, dos quais apenas 3 discordaram do seu sentido. Será conveniente apreciar a fundamentação do acórdão e o conteúdo dos votos de vencido. É o que se fará de seguida. Apesar de se tratar de um texto longo, a sua transcrição (não integral, mas substancial) permitirá realçar as passagens que julguei mais relavantes da fundamentação e da posição vencida.

O acórdão uniformizador começa por descrever o regime vigente de organização judiciária e a posição que nele ocupam os julgados de paz.
De seguida, entra na questão central, assumindo que
"o quadro legal próximo, designadamente a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e a Lei dos Julgados de Paz, não contém norma expressa que nos permita a resolução da questão que tem sido veiculada pela expressão competência alternativa ou exclusiva dos julgados de paz".

Partindo do elemento literal, avança o acórdão, antes mesmo de o analisar, com o "contributo histórico da frustrada experiência legislativa anterior à Lei dos Julgados de Paz, dos trabalhos preparatórios desta última Lei nem da omissão do legislador, na alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais bastante posterior ao desencadear da controvérsia, de operar qualquer clarificação", tendo "por anómala a solução legal de as decisões dos julgados de paz serem sindicadas em via de recurso por tribunais da primeira instância da ordem judicial, apesar de se não integram nessa ordem, ou seja, na hierarquia dos tribunais que a envolve".


Explorando o contexto histórico-legislativo, descreve-se:
"Inicialmente, no quadro dos projectos de lei apresentados na Assembleia da Republica pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, a ideia era a de atribuir aos julgados de paz uma específica parcela material de competência jurisdicional, concomitantemente retirada aos tribunais da ordem judicial por via da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Com efeito, resulta dos trabalhos preparatórios que a delimitação da competência material dos julgados de paz dependia da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais no sentido da perda da correspondente competência pelos tribunais de primeira instância, incluindo os juízos de competência específica.
Todavia, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais não foi objecto da projectada alteração, a lei não estabeleceu a competência material dos julgados de paz por via da redução da competência material dos tribunais e judiciais e ficou colocado conflito de leis de competência material jurisdicional em análise a que acima já se fez referência.
Mas a opção pela não alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais implicou, necessariamente, que o objectivo de atribuir competência exclusiva aos julgados de paz para conhecer das matérias a que se reportava o artigo 5.° do mencionado projecto de lei tivesse ficado absolutamente comprometido, para o bem ou para o mal.
E na feitura da Lei dos Julgados de Paz não se atentou na referida circunstância, certo que se avançou para a sua publicação sem ponderar que, por via dela se ia potenciar o referido conflito.
E agora, conjugando o que se prescreve na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e na Lei de Organização e Funcionamento dos Julgados de Paz, exactamente porque a primeira não foi alterada de modo a conformar-se com a última, o que se configura, prima facie é a competência material concorrencial dos órgãos judiciais da jurisdição cível e dos julgados de paz".


Acrescenta-se, pouco depois:
"os julgados de paz são tribunais constitucionalmente previstos como sendo de existência eventual não integrados em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição, incluindo a dos tribunais judiciais, ou seja, não se inserem na categoria propriamente dita dos tribunais de primeira instância.
Por isso, a lei traça-lhe a vocação para a participação cívica dos interessados e de estímulo à justa composição dos litígios em quadro de acordo, de harmonia com a ideia que envolveu a sua criação de constituírem uma via alternativa de resolução de conflitos, com activa intervenção de mediadores, em termos de propiciarem o descongestionamento dos tribunais da ordem judicial.
Mas nem da lei, nem na ideia que presidiu à sua criação, ou seja, a de propiciarem o referido descongestionamento, se pode extrair algum argumento relevante no sentido da sua competência material inicial exclusiva para as acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, certo que a sua mera competência material inicial alternativa para o efeito também é susceptível, porventura em menor grau, de propiciar a consecução do mesmo desiderato.
Resulta do ordenamento jurídico de referência que os julgados de paz foram instituídos sob a ideia de um projecto experimental, com escassa implantação territorial, susceptibilidade de abrangência de uma pluralidade de municípios, com sede em um deles, sem competência executiva e possibilidade de os processos, mesmo antes da fase do recurso, transitarem deles para continuarem a sua tramitação nos tribunais da ordem judicial.
Este resultado de transmutação, processual expresso na Lei dos Julgados de Paz, a que acima se fez referência, tendo em conta que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, só permite a inferência de que a lei não exclui a concorrência de competência material, quanto às mencionadas acções, entre os julgados de paz e os tribunais judiciais ou os órgãos jurisdicionais nestes integrados.
Seria incompreensível que a lei estabelecesse que as pessoas sem interesse na mediação tivessem de intentar alguma das acções a que se refere o extenso elenco do artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz em julgados de paz sedeados em pontos do território consideravelmente distantes dos tribunais da respectiva comarca, no quadro de um processo com menores garantias de defesa, sem possibilidade de neles discutir a matéria relativa aos incidentes nem de produzir a prova pericial, esta não raro indispensável no âmbito das acções cujo objecto seja a averiguação da responsabilidade civil extracontratual.
E ocorreria uma situação de desigualdade no acesso à justiça a favor das pessoas sem condições objectivas de serem utentes dos julgados de paz e contra aquelas com essas condições.
Ademais, resultaria incongruente que os tribunais da ordem judicial tivessem competência para conhecer das mencionadas acções a partir de determinada vicissitude processual meramente eventual e não a tivessem para conhecer delas inicialmente.
Acresce, neste quadro de incongruência, para o caso de as pessoas serem forçadas a accionar nos julgados de paz por virtude da lei de competência material que nesse sentido estabelecesse, elas facilmente frustrariam essa imperatividade por mero efeito da sua vontade de implementar algum incidente, de requerer a produção de prova pericial ou de deduzir algum pedido reconvencional"
.

A interpretação dos principais preceitos que regulam esta matéria foi, essencialmente, a seguinte:
"Os artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil, que expressam serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, não permitem a conclusão de que a competência dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz não concorre com as dos tribunais da ordem judicial.
Com efeito, os referidos normativos são bastante anteriores à criação dos actuais julgados de paz, pelo que, como é natural, não podiam ser pensados em função da delimitação da competência material quanto às referidas acções entre eles e os tribunais da ordem judicial.
A interpretação actualista dos referidos artigos, face à existência actual de julgados de paz, também não pode implicar a sua aplicação na situação vertente, visto que eles não se integram em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição – constitucional, judicial, administrativa ou de contas.
Acresce que a estatuição dos artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil pressupõe, como é natural, a inexistência de normas atributivas da competência aos tribunais da ordem judicial, o que não acontece no caso espécie, conforme acima já se fez detalhada referência.
Com efeito, conforme acima se referiu, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais atribui competência em razão da matéria aos tribunais ou órgãos jurisdicionais da ordem judicial para conhecerem de qualquer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz.
À interpretação da lei com o referido sentido não obsta o disposto no artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz, que tem servido para alicerçar a referida solução de competência material exclusiva dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º daquela Lei.
Conforme acima se deixou transcrito, o artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz expressa que as acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
A estrutura literal e finalística deste normativo não permite, como é natural, que dele se extraia, por via implícita, uma norma sobre a competência material exclusiva dos julgados de paz, além do mais porque para o efeito só pode servir disposição expressa da lei.
A poder atribuir-se a este normativo algum sentido útil, só poderia ser o de que as partes nas aludidas acções, pendentes nos tribunais da ordem judicial aquando da instalação dos julgados de paz, não podiam optar pela sua transmutação para os julgados de paz, ou seja, o de que, proposta alguma das referidas acções no tribunal judicial, não era possível a opção das partes pela sua continuação nos julgados de paz.
Todavia, o conteúdo deste artigo não pode ser compreendido se não se tiver em conta idêntico texto que constava do projecto de lei tendente à redução da competência em razão da matéria e do valor dos tribunais da ordem judicial e à atribuição correspondente aos julgados de paz.
É claro que o referido normativo só faria sentido no contexto da Lei dos Julgados de Paz se o mencionado projecto de lei, nessa parte, tivesse sido convertido em lei, mas não o foi, certo que se deixou inalterada a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, alteração que constituía um dos seus pressupostos necessários.
Assim, como não foi aprovado o referido projecto de lei, estruturado em paralela conexão lógica com o concernente à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, não perderam os tribunais competência em razão da matéria para conhecer das causas a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, nem os julgados de paz, tal como foram instituídos, a adquiriram"
.

A síntese, que consta do acórdão, é esta:
"Os julgados de paz actuais só na sua vertente de mediação se assemelham aos julgados de paz de pretérito.
A evolução dos trabalhos preparatórios da Lei dos Julgados de Paz revela a intenção de instituir um meio alternativo à via judicial para a resolução dos pequenos diferendos da vida quotidiana, com procedimentos simplificados e informais, em quadro de justiça de proximidade, economicamente acessível e de disponibilização de instrumentos de mediação.
Os julgados de paz não são tribunais judiciais, posicionando-se fora do patamar da organização judiciária portuguesa tal como ela resulta da Constituição e da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Entre os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial da primeira instância não há qualquer relação de limitação de competência, porque o nexo é de paralelismo e de concorrência.
Os julgados de paz são órgãos jurisdicionais de resolução alternativa de litígios e, consequentemente, não sucederam na competência dos tribunais da ordem judicial, nem são seus substitutos, integrando-se na categoria de tribunais de resolução de conflitos de existência facultativa.
As pessoas, podem accionar, quanto às acções previstas no artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, salvo as pessoas colectivas relativamente a exigência de prestações pecuniárias, nos julgados de paz ou nos tribunais da primeira instância da ordem judicial, designadamente nos de competência genérica, nos juízos de competência especializada cível, nos juízos cíveis ou nos juízos de pequena instância cível, conforme os casos.
O accionamento numa das referidas ordens de tribunais exclui a possibilidade de accionamento na outra, sem prejuízo da transmutação das acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial"
.

A decisão contou com votos de vencido dos conselheiros Duarte Soares, Salreta Pereira e Maria dos Prazeres Beleza, embora apenas esta última o tenha fundamentado expressamente. Fê-lo através dos argumentos seguintes:
"1. Não creio que seja possível encontrar na Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz) qualquer sinal de que o legislador pretendeu criar tribunais cuja jurisdição esteja dependente de vontade dos interessados (seja só do autor da acção, seja de ambas as partes); o que é o mesmo que dizer, neste contexto, que não vejo, nem no seu texto, nem na sua história, nem na sua razão de ser, qualquer indicação de que a competência material que lhes foi atribuída seja concorrente com a dos tribunais judiciais:
Não resulta do texto. Contrariamente ao que se passava com o Decreto-Lei nº 539/79, de 31 de Dezembro, nenhum preceito exige tal vontade (o artigo 16º, nº 2 deste Decreto-Lei definia como condição de intervenção dos julgados de paz então criados que “as partes estejam de acordo em fazê-las seguir nos julgado de paz”); é sintomático que a Lei nº 78/2001 apenas tenha exigido acordo das partes para o recurso à mediação (cfr. artigos 35º, nº 1, 49º, nº 1 e 51º, nº 1 da Lei nº 78/2001).
É incompatível com o artigo 67º, que dispõe que “as acções pendentes á data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas”. Este preceito apenas aplica aos julgados de paz a regra geral relativamente à aplicação no tempo das leis sobre competência, constante do artigo 22º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais), segundo a qual a competência se afere pela lei em vigor à data da propositura da acção.
Não resulta do seu silêncio. Não é prática, nas sucessivas leis que têm alterado a organização judiciária, nomeadamente criando tribunais novos, esclarecer que a competência destes novos tribunais exclui a daqueles que, não fora tal lei, continuariam a ser competentes para as causas que passam a ser-lhes atribuídas. O que sucede, como se sabe, é que a competência dos tribunais de competência residual varia em função da especialização existente em cada momento. E isto é verdade, quer dentro dos tribunais judiciais, quer no relacionamento entre ordens de tribunais, dada a competência residual daqueles; pense-se, por exemplo, numa lei que venha alargar a competência global dos tribunais administrativos.
Não tem aqui, pois, relevância a circunstância de os julgados de paz se não integrarem na ordem dos tribunais judiciais.
– Não resulta da história legislativa. Contrariamente ao que se afirma no acórdão, não se pode retirar da não inclusão de uma norma que esclareça que a competência é exclusiva, bem como da não aprovação de qualquer alteração à Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, como esteve proposto, nenhum significado; a lógica do sistema encarrega-se de harmonizar as competências.
– Não resulta da razão de ser da criação dos julgados de paz, que foi a de descongestionamento dos tribunais judiciais.
– Finalmente, também não é imposta pela Constituição, que se limita a prever a possibilidade de a lei ordinária criar julgados de paz, não fornecendo qualquer indicação relevante para a questão agora em causa.
2. O acórdão parte expressamente da premissa de que a exclusividade “não é corolário necessário das normas sobre competência dos tribunais”, premissa que retira da “transmutação de acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial”, prevista nos artigos 41º e 59º, nº 3 da Lei nº 78/2001.
Segundo estes preceitos, os processos devem ser remetidos para o tribunal judicial competente quando for suscitado, por qualquer das partes, um incidente, ou quando for requerida prova pericial.
Em meu entender, este regime não permite de forma alguma concluir pela concorrência de competências. Não é inédito que um tribunal inicialmente (exclusivamente) competente quando a acção foi proposta deixe de o ser por vicissitudes do próprio processo, que determinam que passe outro tribunal a ser (exclusivamente) competente para o julgar. Assim tem sucedido entre nós, por exemplo, quando o tribunal perde a competência por se ter alterado o valor da causa (nomeadamente, porque houve reconvenção), ou quando o processo corria num tribunal e tinha de passar para outro por ser requerida a intervenção do colectivo.
Não me parece argumento a eventualidade de uma parte poder suscitar um incidente apenas para provocar a alteração do tribunal; a possibilidade de utilização indevida de uma lei não é argumento para a interpretar.
3. O acórdão considera ainda incongruente com a exclusividade da competência o afastamento, em certos casos, da competência dos julgados de paz quando é parte uma pessoa colectiva.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que essa exclusão apenas existe para a hipótese prevista da al. a) do nº 1 do artigo 9º, ou seja, para a apreciação de “acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações” cujo objecto seja uma “prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva”,
podendo as pessoas colectivas ser partes em todos os outros casos de competência dos julgados de paz.
Em segundo lugar, sabe-se qual foi a razão de ser desta exclusão: deixar fora dos novos tribunais certas acções de cobrança que, pelo seu número, os tornariam com grande probabilidade, rapidamente, ineficazes, e nas quais, aliás, é legítimo não esperar grande utilidade da existência dos serviços de mediação. A maior ou menor complexidade das causas (que, aliás, pode variar muito dentro do mesmo tipo de causas) não é argumento que permita esquecer a razão de ser desta exclusão.
4. O acórdão considera ainda que é mais consentânea com a finalidade da criação dos julgados de paz e com a sua organização interna a não exclusividade da sua competência. Não discuto que os julgados de paz foram criados com o objectivo de fomentar a participação dos interessados e a resolução dos litígios por acordo; não creio é que daí se possa retirar qualquer conclusão quanto à questão da competência.
Em primeiro lugar, porque o recurso à mediação é facultativo, e depende do acordo de ambas as partes.
Em segundo lugar, porque a lei de processo civil, por exemplo, determina por diversas vezes que se proceda a tentativas de conciliação, sem que haja qualquer incongruência com a circunstâncias de as causas correrem em tribunais judiciais.
O que de todo não posso aceitar é que, dentro da perspectiva de que a intervenção dos julgados de paz é facultativa, se admita que a mesma fique dependente da vontade exclusiva do autor, não se exigindo acordo do réu, por violação do princípio da igualdade no acesso à justiça.
5. Também não encontro qualquer anomalia na previsão de, verificadas certas condições, haver recurso para os tribunais judiciais de primeira instância. Parece-me, aliás, mais adequado que o recurso seja interposto para estes tribunais, tendo em conta o valor máximo das causas que os julgados de paz podem julgar; quanto a passarem para a ordem dos tribunais judiciais, não é inédito, basta pensar nos recursos interpostos de decisões de tribunais arbitrais.
6. Finalmente, considero que, não tendo suporte na lei (literal, sistematica e teleologicamente interpretada, naturalmente) a conclusão de que a competência material dos julgados de paz não exclui a dos tribunais judiciais a quem incumbiria julgar as causas que a lei lhes atribui, ela implicaria um julgamento de inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 9º da Lei nº 78/2001 quando interpretadas no sentido de que atribuem competências exclusivas aos julgados de paz, nomeadamente por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, ou do princípio da igualdade, conjugados ou não (artigos 20º e 13º da Constituição).
Poder-se-iam utilizar vários argumentos para chegar a essa conclusão, que eu apenas exemplifico sem que, com isso, os esteja a subscrever: a circunstância de serem compostos por juízes não integrados na magistratura judicial, com todas as implicações que daí possam decorrer; as regras de processo aplicáveis, eventualmente demasiado simplificadoras (note-se, não tão diferentes do actual ou do passado processo sumaríssimo, ou da acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias prevista no Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro); a quebra da igualdade entre os que seriam obrigados a litigar nos julgados de paz e aqueles que o não seriam, por não existir um julgado de paz competente (o que colocaria, por exemplo, a questão de saber se é aceitável a existência de diferentes graus de especialização dos tribunais judiciais nas diversas circunscrições, ou da aprovação de regimes experimentais aplicáveis apenas em certas zonas); ou da inconsistência do nexo relevante para determinar a competência dos julgados de paz (mas a verdade é que as regras de competência territorial são semelhantes às que constam do Código de Processo Civil)"
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