Jurisprudência do Tribunal da Relação de Guimarães
1) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 10-04-2008, proferido no processo n.º 52/08-2:
"A declaração de que o facto biológico da maternidade não pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa; a acção, cujo pedido é a declaração de que a ré «não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos», respeita a relações jurídicas indisponíveis.
O Juiz da Vara de Competência Mista, é o competente para o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final, numa acção declarativa, com processo ordinário, não contestada, na qual se pede que seja declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos."
Nota - Estamos perante uma decisão sobre um problema original e interessante.
A autora intentou uma acção declarativa, com processo ordinário, contra sua mãe, pedindo que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos». Citada, a ré não contestou.
Não se discutiu o interesse processual (embora também por aqui houvesse um terreno com interesse, para debate).
O que se discutiu foi, apenas, um problema de competência.
"Após a realização e notificação da prova pericial, o Tribunal Judicial de Vila Verde declarou-se incompetente para realizar o julgamento e elaborar a sentença, considerando que cabe ao Juiz de Circulo fazê-lo, pois, trata-se de uma acção de estado em que estão em causa direitos indisponíveis da ré – o direito à maternidade – e, por conseguinte, a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
Por outro lado, o Juiz da Vara Mista de Braga defende que, estando-se perante acção não contestada que prosseguiu por causa diversa das previstas no artigo 485º, alíneas a), b) e c), do C. P. Civil, o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final não cabem a si – artigo 646º, nº 2, alínea a) e nº 5, do C. P. Civil.
E, atendendo ao pedido formulado pela autora, não pode considerar-se que a causa respeite a direitos indisponíveis – artigo 354º, alínea b), do C. Civil."
Sobre a (in)disponibilidade dos direitos em causa, concluiu a Relação:
"O pedido formulado é o de que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos».
A maternidade é um facto biológico a que a lei dá relevância jurídica.
Dispõe o artigo 1796º, nº 1, do C. Civil, que, «relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento e estabelece-se nos termos dos artigos 1803º a 1825º».
Este preceito legal «tem uma intenção determinada: vincar a total sujeição da lei ao facto biológico da maternidade, que é reconhecido pura e simplesmente, e retirar à mãe qualquer possibilidade de impedir a constituição do estado. Com efeito, a mãe não «perfilha», não manifesta qualquer vontade de admitir o filho, nem pode rejeitar o facto da maternidade; o seu eventual interesse em ocultar a filiação não é tutelado pelo sistema jurídico». Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, 1979, pág. 8.
Mas, se a mãe não pode rejeitar o facto biológico da maternidade, a declaração de que este, nem sequer pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, também não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa.
Daí que, em nosso entender, o reconhecimento de que determinada mulher não apresenta condições fisiológicas para procriar ou ter mais filhos se insere, no âmbito das chamadas relações jurídicas indisponíveis pela sua própria natureza.
A acção em causa respeita, então, a relações jurídicas indisponíveis."
E, quanto à competência: "em situações como a que, agora, se nos depara, aplica-se o nº 5, do citado artigo 646º, ou seja, não tendo lugar a intervenção do colectivo, o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, se a sua intervenção tivesse tido lugar e que, no caso, é o Juiz da Vara de Competência Mista de Braga, porquanto, o presidente do Tribunal Colectivo sempre seria aquele".
Não conheço outro acórdão sobre um assunto semelhante. Considerei-o de grande interesse. Não desenvolvo mais considerações porque ainda não tenho uma opinião suficientemente sólida sobre os vários problemas que o acórdão levanta, mas, sabendo que, entre os leitores do blog, há outros "gulosos" por problemas originais, aqui o deixo, para reflexão.
2) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-04-2008, proferido no processo n.º 165/08-1:
"I. A transmissão, na pendência da causa, do direito de propriedade referente ao imóvel objecto de providência cautelar de Restituição Provisória da Posse não determina a ilegitimidade do transmitente.
II. É pressuposto do decretamento da providência cautelar de Restituição Provisória da Posse a prova de que o requerente da providência é titular da posse sobre o bem cuja restituição é ordenada.
III. E a prova da titularidade da posse sobre o bem não se confunde com a prova da titularidade do direito de propriedade sobre esse mesmo bem.
A aquisição da posse por traditio só se verifica se o transmitente do direito relativo à coisa tinha a posse."
Nota - Quanto ao primeiro ponto, a solução resulta, linearmente, do disposto no artigo 271.º do CPC. Sobre a aplicabilidade desta norma, pode ler-se, com especial interesse, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2008, proferido no processo n.º 3007/03.2TBAGD.C1, e ainda, da mesma Relação, o de 30-04-2002, proferido no processo n.º 42/02, bem como o do Tribunal da Relação de Évora de 15-11-2007, proferido no processo n.º 1866/07-3, e de 10-05-2007, proferido no processo n.º 104/07-3.
Note-se que o traço mais importante - e cujo esquecimento pode trazer surpresas aos mais incautos - do regime do artigo 271.º do CPC consiste no efeito do caso julgado se estender ao adquirente, ainda que este não venha a ser habilitado (cfr., a propósito, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2006, proferido no processo n.º 892/2006-6, e de 03-12-2002, proferido no processo n.º 8278/2002-7).
3) Decisão de reclamação para o Tribunal da Relação de Guimarães de 17-04-2008, proferida no processo n.º 867/08-1:
Sumário (da minha responsabilidade, pois não se encontra disponível): Numa acção declarativa especial para o cumprimento de obrigação pecuniária, cujo pedido assenta num contrato de arrendamento para habitação celebrado com a ré, é admissível recurso, independentemente do valor da alçada, nos termos do n.º 5 do art.º 678.º do CPC, ainda que a ré tenha alegado e provado que não existiu entre ela e o autor qualquer contrato de arrendamento celebrado entre ambos.
Nota - Para sustentar esta conclusão, sustentou a Relação o seguinte: "O cerne da questão foi, assim, a apreciação da validade (ou não validade) do contrato de arrendamento justificativo do pagamento das rendas da ré ao autor e, por isso, dúvidas não podemos ter de que esta acção envolve a apreciação da subsistência daquele contrato de arrendamento para habitação para efeitos do disposto no n.º 5 do art.º 678.º do C.P.Civil."
A Relação atendeu a reclamação, revogando a decisão da primeira instância, mas a solução pode levantar algumas dúvidas.
Na acção foi pedido o pagamento de certas quantias a título de rendas vencidas e não pagas, de um contrato de arrendamento que - se bem interpreto o relatório da decisão - o próprio autor não dava como ainda subsistente.
Na contestação, a ré impugnou a existência de um contrato.
Na verdade, no momento da propositura da acção, nem na tese do autor nem na tese do réu subsistiria um contrato de arrendamento: o autor porque defendia ter existido um contrato, já extinto, com algumas rendas não pagas; a ré porque defendia nunca ter havido um contrato de arrendamento.
Ora, se se considerar, como fez o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01-06-2004, proferido no processo n.º 1085/2004, que "se se discute apenas e só o quanto a pagar por rendas vencidas, a admissibilidade do recurso é aferida pelos critérios gerais da sucumbência e da alçada referidos no artigo 678.º, n.º 1 do Código de Processo Civil".
No fundo não se discutia a subsistência do arrendamento (porque ambas as partes admitiam, embora por caminhos diferentes, que o arrendamento não existia à data da propositura da acção), nem a sua validade ou invalidade (porque o autor não a questionou e a ré também não, apenas impugnando a sua existência enquanto facto jurídico).
Admito, porém, que a solução não é linear e que possa defender-se que o espírito da norma admite que nela se inclua a existência ou inexistência do contrato de arrendamento, embora me pareça que casos com a configuração deste, que agora se analisa, não cabem no âmago do preceito que se considerou aplicável.
"A declaração de que o facto biológico da maternidade não pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa; a acção, cujo pedido é a declaração de que a ré «não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos», respeita a relações jurídicas indisponíveis.
O Juiz da Vara de Competência Mista, é o competente para o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final, numa acção declarativa, com processo ordinário, não contestada, na qual se pede que seja declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos."
Nota - Estamos perante uma decisão sobre um problema original e interessante.
A autora intentou uma acção declarativa, com processo ordinário, contra sua mãe, pedindo que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos». Citada, a ré não contestou.
Não se discutiu o interesse processual (embora também por aqui houvesse um terreno com interesse, para debate).
O que se discutiu foi, apenas, um problema de competência.
"Após a realização e notificação da prova pericial, o Tribunal Judicial de Vila Verde declarou-se incompetente para realizar o julgamento e elaborar a sentença, considerando que cabe ao Juiz de Circulo fazê-lo, pois, trata-se de uma acção de estado em que estão em causa direitos indisponíveis da ré – o direito à maternidade – e, por conseguinte, a vontade das partes é ineficaz para produzir o efeito jurídico que pela acção se pretende obter.
Por outro lado, o Juiz da Vara Mista de Braga defende que, estando-se perante acção não contestada que prosseguiu por causa diversa das previstas no artigo 485º, alíneas a), b) e c), do C. P. Civil, o julgamento da matéria de facto e prolação da sentença final não cabem a si – artigo 646º, nº 2, alínea a) e nº 5, do C. P. Civil.
E, atendendo ao pedido formulado pela autora, não pode considerar-se que a causa respeite a direitos indisponíveis – artigo 354º, alínea b), do C. Civil."
Sobre a (in)disponibilidade dos direitos em causa, concluiu a Relação:
"O pedido formulado é o de que seja «declarado que a ré não apresenta quaisquer condições para concepção ou ter filhos».
A maternidade é um facto biológico a que a lei dá relevância jurídica.
Dispõe o artigo 1796º, nº 1, do C. Civil, que, «relativamente à mãe, a filiação resulta do facto do nascimento e estabelece-se nos termos dos artigos 1803º a 1825º».
Este preceito legal «tem uma intenção determinada: vincar a total sujeição da lei ao facto biológico da maternidade, que é reconhecido pura e simplesmente, e retirar à mãe qualquer possibilidade de impedir a constituição do estado. Com efeito, a mãe não «perfilha», não manifesta qualquer vontade de admitir o filho, nem pode rejeitar o facto da maternidade; o seu eventual interesse em ocultar a filiação não é tutelado pelo sistema jurídico». Guilherme de Oliveira, Estabelecimento da Filiação, 1979, pág. 8.
Mas, se a mãe não pode rejeitar o facto biológico da maternidade, a declaração de que este, nem sequer pode ocorrer, por impossibilidade fisiológica da mulher, nomeadamente, em virtude da sua idade, também não pode ficar à mercê da livre autonomia da vontade daquela ou de qualquer outra pessoa.
Daí que, em nosso entender, o reconhecimento de que determinada mulher não apresenta condições fisiológicas para procriar ou ter mais filhos se insere, no âmbito das chamadas relações jurídicas indisponíveis pela sua própria natureza.
A acção em causa respeita, então, a relações jurídicas indisponíveis."
E, quanto à competência: "em situações como a que, agora, se nos depara, aplica-se o nº 5, do citado artigo 646º, ou seja, não tendo lugar a intervenção do colectivo, o julgamento da matéria de facto e a prolação da sentença final incumbem ao juiz que a ele deveria presidir, se a sua intervenção tivesse tido lugar e que, no caso, é o Juiz da Vara de Competência Mista de Braga, porquanto, o presidente do Tribunal Colectivo sempre seria aquele".
Não conheço outro acórdão sobre um assunto semelhante. Considerei-o de grande interesse. Não desenvolvo mais considerações porque ainda não tenho uma opinião suficientemente sólida sobre os vários problemas que o acórdão levanta, mas, sabendo que, entre os leitores do blog, há outros "gulosos" por problemas originais, aqui o deixo, para reflexão.
2) Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 17-04-2008, proferido no processo n.º 165/08-1:
"I. A transmissão, na pendência da causa, do direito de propriedade referente ao imóvel objecto de providência cautelar de Restituição Provisória da Posse não determina a ilegitimidade do transmitente.
II. É pressuposto do decretamento da providência cautelar de Restituição Provisória da Posse a prova de que o requerente da providência é titular da posse sobre o bem cuja restituição é ordenada.
III. E a prova da titularidade da posse sobre o bem não se confunde com a prova da titularidade do direito de propriedade sobre esse mesmo bem.
A aquisição da posse por traditio só se verifica se o transmitente do direito relativo à coisa tinha a posse."
Nota - Quanto ao primeiro ponto, a solução resulta, linearmente, do disposto no artigo 271.º do CPC. Sobre a aplicabilidade desta norma, pode ler-se, com especial interesse, o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 22-01-2008, proferido no processo n.º 3007/03.2TBAGD.C1, e ainda, da mesma Relação, o de 30-04-2002, proferido no processo n.º 42/02, bem como o do Tribunal da Relação de Évora de 15-11-2007, proferido no processo n.º 1866/07-3, e de 10-05-2007, proferido no processo n.º 104/07-3.
Note-se que o traço mais importante - e cujo esquecimento pode trazer surpresas aos mais incautos - do regime do artigo 271.º do CPC consiste no efeito do caso julgado se estender ao adquirente, ainda que este não venha a ser habilitado (cfr., a propósito, os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 09-03-2006, proferido no processo n.º 892/2006-6, e de 03-12-2002, proferido no processo n.º 8278/2002-7).
3) Decisão de reclamação para o Tribunal da Relação de Guimarães de 17-04-2008, proferida no processo n.º 867/08-1:
Sumário (da minha responsabilidade, pois não se encontra disponível): Numa acção declarativa especial para o cumprimento de obrigação pecuniária, cujo pedido assenta num contrato de arrendamento para habitação celebrado com a ré, é admissível recurso, independentemente do valor da alçada, nos termos do n.º 5 do art.º 678.º do CPC, ainda que a ré tenha alegado e provado que não existiu entre ela e o autor qualquer contrato de arrendamento celebrado entre ambos.
Nota - Para sustentar esta conclusão, sustentou a Relação o seguinte: "O cerne da questão foi, assim, a apreciação da validade (ou não validade) do contrato de arrendamento justificativo do pagamento das rendas da ré ao autor e, por isso, dúvidas não podemos ter de que esta acção envolve a apreciação da subsistência daquele contrato de arrendamento para habitação para efeitos do disposto no n.º 5 do art.º 678.º do C.P.Civil."
A Relação atendeu a reclamação, revogando a decisão da primeira instância, mas a solução pode levantar algumas dúvidas.
Na acção foi pedido o pagamento de certas quantias a título de rendas vencidas e não pagas, de um contrato de arrendamento que - se bem interpreto o relatório da decisão - o próprio autor não dava como ainda subsistente.
Na contestação, a ré impugnou a existência de um contrato.
Na verdade, no momento da propositura da acção, nem na tese do autor nem na tese do réu subsistiria um contrato de arrendamento: o autor porque defendia ter existido um contrato, já extinto, com algumas rendas não pagas; a ré porque defendia nunca ter havido um contrato de arrendamento.
Ora, se se considerar, como fez o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 01-06-2004, proferido no processo n.º 1085/2004, que "se se discute apenas e só o quanto a pagar por rendas vencidas, a admissibilidade do recurso é aferida pelos critérios gerais da sucumbência e da alçada referidos no artigo 678.º, n.º 1 do Código de Processo Civil".
No fundo não se discutia a subsistência do arrendamento (porque ambas as partes admitiam, embora por caminhos diferentes, que o arrendamento não existia à data da propositura da acção), nem a sua validade ou invalidade (porque o autor não a questionou e a ré também não, apenas impugnando a sua existência enquanto facto jurídico).
Admito, porém, que a solução não é linear e que possa defender-se que o espírito da norma admite que nela se inclua a existência ou inexistência do contrato de arrendamento, embora me pareça que casos com a configuração deste, que agora se analisa, não cabem no âmago do preceito que se considerou aplicável.
Etiquetas: arrendamento, habilitação, jurisprudência TRG, providência cautelar, recursos
2 Comentários:
Epidermicamente, e ainda sem ler o acórdão, ocorreu-me o texto do art. 2.º, n.º 2, do Código de Processo Civil: “A todo o direito (...) corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou reparar a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da acção”.
Depois li o acórdão. Ele não incide sobre a relação jurídica controvertida, pelo que ficamos sem saber qual o concreto direito invocado pela autora.
PRF
A questão é exactamente essa. Tenho muita curiosidade quanto à construção da p. i., para tentar perceber em que direito concreto se terá alicerçado tal pedido.
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