quarta-feira, julho 04, 2007

Jurisprudência Constitucional

1) Dou início à análise da jurisprudência constitucional com um acórdão que, não se debruçando sobre normas de direito processual civil, tem alguma importância, por se ter suscitado a intervenção do plenário do Tribunal Constitucional, por a decisão ter obtido maioria tangencial (7 votos contra 5) e, essencialmente, porque me parece ter algum interesse teórico (e algum prático também).

A nossa história começa pelas 14h50m do dia 26 de Maio de 2004, em Linda-a-Velha, Oeiras, no autocarro n.° 219, da carreira 2, autocarro no qual entrou A., sem o necessário bilhete.
Verificada a infracção, seguiram-se os trâmites normais, que culminaram na acusação deduzida, pelo Ministério Público, contra A., pela prática da contravenção de falta de título de transporte válido em transportes públicos, prevista e punível pelo art.° 3º, n.° 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio.
A dita norma assim dispõe:
"Nos casos em que a cobrança seja feita por qualquer outro processo, os infractores pagarão o preço do bilhete correspondente ao seu percurso, acrescido de uma multa do montante de:
a) 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado, na hipótese de não terem adquirido qualquer título válido de transporte(...)".
A. estava, todavia, em maré de sorte.
O juiz que o julgou recusou-se a aplicar a norma referida anteriormente e absolveu-o da contravenção. Depois de muitas considerações, concluiu assim:
"Pelos fundamentos expostos, decide-se:
A) Julgar inconstitucional, por violação dos princípios constitucionais da culpa, da igualdade e da proporcionalidade consagrados nos art.°s 1.º, 13.º, n.° 1, 18.º, n.° 1, 25.°, n.° 1, e 30.°, n.° 1, da Constituição, a norma constante do artigo 3.°, n.º 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio, e em consequência,
B) Na não aplicação daquela norma, ABSOLVER o arguido A. da transgressão de que vinha acusado".
O Ministério Público recorreu, como é sua obrigação, para o Tribunal Constitucional.
Mas a boa fortuna de A. não era de molde a ser travada desta forma.
Apreciando o seu caso, o Tribunal Constitucional decidiu, no acórdão n.º 579/2006, confirmar o juízo de inconstitucionalidade da primeira instância, considerando, no essencial, que, aplicando-se às contravenções os princípios gerais das penas criminais, uma pena fixa não se mostra conforme a tais princípios. Aliás, já anteriormente o mesmo tribunal entendera não serem admissíveis penas fixas - cfr. acórdãos números 95/2001, 202/2000, 20/2002 e 124/2004, pois não permitem, como se sabe, graduar a culpa, potenciando a desigualdade e desproporcionalidade das decisões de aplicação das respectivas normas. Acolhendo os princípios já anteriormente tratados nos acórdãos referidos, o Tribunal Constitucional concluiu então, no dito acórdão n.º 579/2006, pela inconstitucionalidade daquela norma punitiva, cujos efeitos A. nunca chegou a sofrer.

Pois muitos outros autocarros passaram, muitas pessoas entraram e saíram deles, umas com bilhete e outras sem ele. Entre estas últimas, algumas infracções foram detectadas e outras não.
A sorte de A. não acompanha qualquer um. Que o diga B., que também em Oeiras se lembrou de pôr o pé num autocarro sem pagar bilhete.
Começou por ter a mesma sorte, pois no tribunal de Oeiras foi absolvida, sensivelmente nos mesmos termos em que também A. o havia sido.
Mais uma vez, recorreu o Ministério Público por dever de ofício. Por dever de ofício - digo - nitidamente, já que faz coro com a recorrida e ambos defendem a manutenção da decisão.
Mas a sorte de B. não era da mesma substância da sorte de A. Era nitidamente mais fraca, pois que o Tribunal Constitucional acabou por, no acórdão n.º 117/2007, "não julgar inconstitucional a norma da alínea a) do n.º 2 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 108/78, de 24 de Maio, na parte em que estabelece, para a contravenção aí prevista, uma multa correspondente a 50% do preço do respectivo bilhete, mas nunca inferior a cem vezes o mínimo cobrável no transporte utilizado". O acórdão foi tirado por unanimidade.

O Ministério Público interpôs então novo recurso, ao abrigo do artigo 79.º-D da Lei do Tribunal Constitucional, com fundamento em que o julgamento de não inconstitucionalidade no caso de B. foi contraditório com o juízo de inconstitucionalidade formulado no caso de A.
Mas, como disse, a sorte de B. não é a sorte de A. Levada o problema a plenário, e apesar do juízo de inconstitucionalidade do acórdão nº 579/2006 (que se pode encontrar, em termos semelhantes, no acórdão n.º 679/2006), o Tribunal Constitucional entendeu, pela maioria referida de 7 contra 5, no acórdão n.º 344/2007, não julgar inconstitucional a norma em apreço.
Admitindo - tal como o acórdão fundamento - que em direito penal não são admissíveis penas fixas, considera-se porém que "não são transponíveis, sem mais, para a apreciação da conformidade constitucional das penas pecuniárias fixas estabelecidas nos restantes espaços sancionatórios".
Para o Tribunal Constitucional "o princípio da culpa pode ser pressuposto da imposição da sanção (fundamento), mas não é um factor constitucionalmente necessário da sua medida concreta (limite individual), não significando a cominação de uma multa contravencional fixa, por si só, violação dos artigos 1.º e 27.º, n.º 1, da Constituição", e, no domínio das contravenções, "em que a punição não é baseada numa censura ética e em que prevalece a função admonitória, é constitucionalmente suportável que a sanção seja legalmente tarificada, reduzindo a intervenção mediadora do juiz na individualização da sanção, em homenagem a exigências de prevenção geral e de eficácia da dissuasão".
E acrescenta-se, mais adiante: "Ora, se os preços são fixados em função de um paradigma económico que procura colocar todos os consumidores no mesmo plano, quanto à possibilidade de poder aceder a tais bens, dentro de uma óptica de igualdade de oportunidades, não se vê que o legislador, optando pela conformação de um ilícito contravencional (ou contra-ordenacional) perspectivado para conferir eficácia ao dever do seu pagamento/cobrança, não possa, por decorrência desses mesmos princípios, estabelecer um padrão de pena igual para todos aqueles que o violem, desde que ele se situe dentro de valores que não sejam desadequados, e exista uma infracção a punir". Finalmente, escreve-se no dito acórdão: "o montante da multa fixa agora em exame pode objectivamente considerar-se moderado, em termos de valores absolutos, porque o tipo de cobrança a que o infractor se furta é característico de carreiras com percursos urbanos ou de periferia, em que o mínimo cobrável, correspondendo a trajectos curtos, é necessariamente baixo. O que, aliás, é patente no caso, em que estava em causa uma multa de €144,40 (1,44 x 100) e bem justifica que se questione a razoabilidade da averiguação judicial sistemática das circunstâncias que poderiam relevar na individualização e graduação da sanção, averiguação que poderia implicar um esforço da máquina judiciária em detrimento de questões mais relevantes, ou, pelo seu carácter rotineiro, conduzir a situações de injustiça relativa".

Os votos de vencido convergem na declaração da conselheira Maria João Antunes, que retoma "a fundamentação dos Acórdãos do Tribunal Constitucional n.ºs 579/2006, 679/2006 e 5/2007", concluindo ser de aplicar, a estas hipóteses, a proibição que, em geral, se tem afirmado quanto às penas fixas - cfr. acórdãos números 202/2000, 203/2000, 95/2001, 70/2002, 485/2002 e 124/2004.
Escreve a referida conselheira: "A circunstância de se tratar de uma pena de multa, de uma sanção patrimonial, em nada justifica que esta sanção penal (criminal) seja subtraída à proibição constitucional de penas fixas: a pena de multa é uma pena criminal autêntica, sem qualquer subordinação político-criminal à pena de prisão (...). Pelo contrário, a natureza patrimonial da sanção faz com que a previsão de uma pena fixa ofenda o princípio da igualdade também por “prejudicar o agente de mais fraca situação económico-financeira por absoluta incapacidade para a tomar em conta no momento da determinação concreta” da sanção (...).
A natureza penal das contravenções, por seu turno, é compatível com a consagração de regras privativas desta categoria penal, por comparação com as previstas para os crimes (...). Regras privativas que podem mesmo abranger o âmbito da reserva relativa de competência legislativa da Assembleia da República, prevista no artigo 165.º, n.º 1, da Constituição (...).
Argumentos como os utilizados no ponto 11. e, em geral, os que se referem à falta de “ressonância ética” da infracção em causa são relevantes apenas para o efeito de saber se a intervenção penal é legítima, do ponto de vista jurídico-constitucional, quando o comportamento do agente se traduza em utilizar transportes colectivos de passageiros sem título de transporte válido (artigo 2.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 108/78). Questão que extravasa o objecto do presente recurso de constitucionalidade".

E o leitor, que sorte ditaria se fosse chamado a aplicar a norma do art.° 3º, n.° 2, alínea a), do Decreto-Lei n.° 108/78, de 24 de Maio? A de A. ou a de B.? Revendo-me no voto de vencido, eu faria frente à má sorte de B., mas já vou tarde...


2) No acórdão n.º 363/2007, não foi julgada inconstitucional a norma do artigo 53.º, n.º 3 do Código das Custas Judiciais, na interpretação segundo a qual "a contagem dos juros, para efeitos de custas, é feita sobre as quantias peticionadas e não sobre as quantias em que as partes foram efectivamente condenadas e bem assim com a interpretação de que, para efeitos de custas, devem ser incluídos os juros vencidos durante o período em que o processo esteve parado sem que para isso tivessem contribuído as partes".
Entendeu-se que, não afectando a norma em causa, naquela interpretação, o direito a um processo célere e equitativo, nem estabelecendo um encargo financeiro intolerável a quem recorre aos tribunais, estabelecendo uma restrição desproporcionada, injustificada ou arbitrária do direito à efectivação do acesso à justiça.
Retomando, em parte, considerações que constam do acórdão n.º 708/2005, entendeu-se igualmente que "cabe ainda na margem de discricionariedade que, nesta matéria, é conferida ao legislador ordinário, a opção por um critério que associe o valor a pagar a título de taxa de justiça ao valor da globalidade dos interesses solucionados no processo, que é o valor, afinal, da utilidade económica da acção. Uma opção legislativa que confira relevo, para efeito de cálculo de custas, à proporção do decaimento da parte vencida, não se configura como desproporcionada ou injusta".

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