quinta-feira, fevereiro 22, 2007

Litigância de má fé: uma "viagem" ao processo penal

Há dias, deixei aqui algumas notas desenvolvidas sobre a litigância de má fé das pessoas colectivas. Hoje, faço um ocasional desvio ao tema geral do blog para dar conta de uma decisão muito interessante do Supremo Tribunal de Justiça no âmbito do processo penal.
O acórdão deste tribunal de 14-02-2007, proferido no processo n.º 06P361, tem o seguinte sumário:
"A especificidade do processo penal impede a condenação, como litigante de má fé, dum arguido que apresenta sucessivos requerimentos com o fim de entorpecer a acção da justiça protelando, sem fundamento, o trânsito em julgado de decisão que o vise.
Tal tipo de comportamentos põe em causa a essência do Estado de direito, demandando uma reacção que a própria condenação como litigante de má fé não asseguraria."

No caso concreto, o Tribunal da Relação de Lisboa havia condenado o arguido por litigância de má fé, embora a decisão tenha contado com um voto de vencido (bastante extenso, por sinal). O acórdão em causa (da Relação) é de 09-11-2005, tendo sido proferido no processo n.º 7995/2001-3. O seu texto integral, incluindo o voto de vencido, podem encontrar-se aqui.

O acórdão do Supremo é breve e remete para outras decisões. Deixo aqui, antes de mais, o essencial da sua fundamentação, a este respeito.

"(...)
Situando-nos no art.º 4.º do CPP logo deparamos com uma exigência:
Que se trate dum caso omisso.
A este respeito, trazemos para aqui as palavras de Germano Marques da Silva (Curso de Processo Penal, I, 104):
“É preciso ter muito cuidado em matéria de integração analógica. É que só há lugar a integração quando exista lacuna e esta só existe quando haja uma situação que é necessário regular e o não é, isto é, para a qual a lei não dê directamente solução.”
Ora, o legislador do processo penal teve em conta situações de litigância de má fé ( ou afim ). Expressamente, na alínea c) do art.º 520.º do CPP e, consignando uma figura com manifestas afinidades, no art.º 223.º, n.º6, no art.º 420.º, n.º4 e no art.º 45.º, n.º5.
Se se considerasse existir lacuna quanto à condenação por litigância de má fé em geral no processo penal, por quê a estatuição daqueles preceitos? E como se conjugaria a regra geral com aquele estatuição específica?

Depois, exige ainda aquele artigo 4.º que as normas de processo civil se harmonizem com o processo penal.
E vêm ao de cima aqui particulares diferenças:
O arguido tem um estatuto próprio, resultante, em grande medida, do art.º 61.º. Não tem, nomeadamente, qualquer sanção se se vier a demonstrar que, sobre os factos que lhe são imputados, não disse a verdade. O que contraria a relevância duma das situações que mais frequentemente leva, em processo civil, à condenação que vimos abordando.
Mesmo no plano geral, as diferenças são acentuadas, como escreveu o citado Professor, agora a páginas 32.
A harmonização exigida pelo dito art.º 4.º não é fácil.
Ligada a esta questão da harmonização, temos o desenho legal da própria figura da condenação por litigância de má fé.
Logo começa o art.º 456.º do CPC por se referir a “ parte “, prevendo logo a seguir uma indemnização à parte contrária, precisando no artigo seguinte o conteúdo desta.
Depois, prevê-se o caso de a “parte” ser um incapaz, uma pessoa colectiva ou uma sociedade, referindo que a responsabilidade recai sobre o seu representante que esteja de má fé na “causa”. Tudo muito difícil de conceber em processo penal. Basta pensar-se que um menor de 16 anos pode ser arguido, não se podendo falar sequer em “representante” para estes efeitos.
Não admitimos, pois, a condenação por litigância de má fé em processo penal. Os argumentos aduzidos podem não ser considerados válidos quanto ao pedido cível (ou outros incidentes do processo penal como o arresto preventivo) mas não é quanto a actos integrantes destes que nos temos de pronunciar.
Acompanhamos, aliás, grande parte da Jurisprudência, nomeadamente, os Ac.s deste Tribunal de 14.10.92 ( BMJ 420, 406), 5.11.98 (proc.574/98), 26.2.02 (CJ STJ, X, 2, 227) e de 9.3.2005 (proc.4401/03).
Na doutrina, pronunciaram-se também pela negativa, Abrantes Geraldes, Temas Judiciários, I, 334, e Salvador da Costa (Código das Custas judiciais Anotado, 458), este, todavia, com ressalva do pedido cível e do arresto preventivo enxertado em processo penal.
Não ignoramos que, em processo penal, têm lugar – bem mais frequentemente do que o legislador certamente imagina – situações de invocação sucessiva dos mais diversos incidentes que, em limite, levam até a que uma decisão não transite, pelo menos em tempo útil. Basta pensar-se em arguido que tudo põe em causa, deste a colocação ou bondade da nomeação do juiz que o julga até à legitimidade dos demais intervenientes processuais. O próprio indeferimento das suas pretensões é objecto de impugnação sistemática, com os mais variados fundamentos e aí por diante.
Cremos nós que, nestes casos, está em causa a própria essência do Estado de Direito e que, nessa medida, o legislador terá, ou deverá ter, uma palavra. É nele que reside, a nosso ver, a possibilidade de tornar inerente ao processo penal o exercício da autoridade que vede este tipo de situações.
Sabendo-se mesmo que há muitos arguidos que não têm bens penhoráveis, a própria condenação por litigância de má fé, se fosse admissível, não serviria o profundo interesse que está em jogo."

Sobre este problema, havia já acórdãos em sentidos diversos.

Pela aplicabilidade do regime da litigância de má fé ao processo penal, para além da decisão, já referida, da Relação de Lisboa, pronunciaram-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 09-07-1986, proferido no processo n.º 038002, do Tribunal da Relação do Porto de 15-12-1999, proferido no processo n.º 9940855 ("também em processo penal é possível haver condenação por litigância de má fé, quer do arguido, quer do assistente, quer do simples lesado, quer das partes civis"), de 22-10-1997, proferido no processo n.º 9710828, de 13-07-1994, proferido no processo n.º 9420580 (este, embora não condene por litigância de má fé, admite o instituto, apenas considerando que não se verificam os seus requisitos),

Pela não aplicabilidade daquele instituto em processo penal decidiram os acórdãos do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-10-2005, proferido no processo n.º 4040/2005-3 (admitindo, porém, a responsabilização do advogado), de 22-01-2003, proferido no processo n.º 0083653, de 14-01-2003, proferido no processo n.º 0083645 e de 06-02-1996, proferido no processo n.º 0007265, do Tribunal da Relação de Coimbra de 12-07-2006, proferido no processo n.º 1676/06, e de 19-02-2003, proferido no processo n.º 3129/2002 (admitindo, porém, a condenação como litigante por má-fé no incidente de apoio judiciário), do Tribunal da Relação de Guimarães de 25-05-2005, proferido no processo n.º 809/05-1, e do Tribunal da Relação de Évora de 07-02-2006, proferido no processo n.º 2334/05-1.

Pela não aplicabilidade do regime da litigância de má fá na acção cível enxertada no processo penal, pode ler-se o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-06-2006, proferido no processo n.º 0640683.

Algo inconclusivo (embora me pareça alinhar pela inadmissibilidade), pela brevidade do sumário, é o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 13-04-2000, proferido no processo n.º 0002249: "o CPP não consagrou o regime de litigância de má fé, do CPC, embora não tenha ficado indiferente à possibilidade de os sujeitos processuais actuarem de má fé, sancionando-os em diversas situações processuais com o pagamento de uma importância em dinheiro".

Em resumo, entende-se, no primeiro grupo de decisões, que se trata de uma lacuna do processo penal, a integrar por apelo às regras do processo civil, atendendo ao facto de o arguido também poder fazer uso anormal do processo (principalmente quando tenta entorpecê-lo pela invocação sucessiva de expedientes processuais sem fundamento sério). Nas restantes, entende-se que não há lacuna, sendo a omissão de tal regime no processo penal intencional, já que o instituto será incompatível com os direitos do arguido.
Tendo a subscrever a entendimento que pugna pela inaplicabilidade do regime da litigância de má fé em processo penal.
Para além das razões constantes da decisão do STJ citada em primeiro lugar, convence-me a seguinte argumentação do já referido acórdão do Tribunal de Coimbra de 12-07-2006, proferido no processo n.º 1676/06:
"Acresce que, a particular natureza do processo penal, subtraído à disponibilidade dos intervenientes, orientada para a realização do interesse público, “ num quadro de acção e de intervenção processual que não se assume nunca como um processo de partes “ não é compaginável com o instituto da litigância de má-fé do processo civil, ao qual subjaz o pressuposto de liberdade de actuação e de disposição processuais próprios daquele tipo de processo.

Por sobre tudo isso, e no que concerne concretamente o caso do arguido, a desadequação dos princípios subjacentes à condenação como litigante de má-fé e o estatuto que é o do arguido, patenteia-se ainda com mais evidência, atenta a especial garantia do direito de defesa que, desde logo em sede constitucional - artº 32º nº 1 da CRP - lhe é assegurado. Com efeito, a lei parte da ideia base de que a intervenção do arguido no processo tem por finalidade apenas a sua defesa, e desta ideia base faz derivar um conjunto de direitos para garantia daquele mesmo direito de defesa. Garantia de que o arguido poderá intervir processualmente sempre que o entender, apenas orientado pelo que seja a sua estratégia de defesa, sendo-lhe reconhecido um direito genérico à jurisdição , e concretamente o direito ao recurso – nº 1 do referido artº 32º da CRP e 401º do CPP - oferecendo provas e requerendo as diligências que tiver por pertinentes – artº 28º nº 2 da CRP e artº 61º al. f) do CPP – prestando ou recusando a sua colaboração sem que o seu silêncio o possa desfavorecer de qualquer forma – artº 343º nº 1 e 345º do CPP . Em todas estas situações estamos perante direitos que fazem parte integrante do estatuto do arguido que não são compatíveis com o instituto da litigância de má-fé, a que estão subjacentes princípios como o dever de cooperação para a realização célere da justiça e descoberta da verdade.

Por isso que o facto de não ter previsto a condenação nos termos específicos do litigante de má-fé não pode ser considerado como lacuna da lei, antes como vontade manifesta do legislador processual penal de assim proceder. Não pode dizer-se que exista lacuna da lei quando o silêncio da lei surge justificado por razões político-jurídicas, como correspondendo a uma opção do legislador que, conscientemente não tratou juridicamente um certo caso."

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