Para variar (ou desenjoar): duas decisões fora do Processo Civil
De vez em quando, vou dando nota de decisões que guardo para além do tema do Processo Civil. Faço-o raramente, para não descaracterizar o blog, se a questão e/ou fundamentação me despertar especial interesse. Aqui ficam, neste espírito, duas decisões sobre temas inteiramente distintos: uma delas é sobre direito penal; a outra trata de direito civil.
1) A primeira, proferida em processo penal, tem algum interesse prático: "o tribunal de instrução criminal é incompetente para decidir a quebra do sigilo bancário" (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-12-2006, proferido no processo n.º 0615336), contrariando a posição do juiz de instrução e do MP, em primeira instância.
A fundamentação do acórdão é sucinta e segue-se com facilidade, pelo que se transcreve aqui, de seguida.
"Dispõe o art. 78° n°s 1 e 2 do Dec. Lei n°298/92 de 31-12 que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, seus empregados, mandatários e outras pessoas que lhes prestem serviços (…) não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes (…) aos nomes dos clientes, às contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, sendo certo que a situação dos autos se encontra abrangida por esse dever.
A violação desse dever pode integrar o crime de violação de segredo p. e p. pelo artº195° do Cód. Penal.
Quanto ao dever de segredo profissional, este é geralmente estabelecido tendo em conta o bom nome, a reputação e a reserva da vida privada das pessoas a quem aproveita, conjugados com o interesse, também privado, da protecção das relações de confiança entre as instituições financeiras e respectivos clientes.
Por seu turno, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262° do Cód. Proc. Penal).
Por isso que, quer em sede dos meios de prova, quer em sede dos meios de obtenção de prova, designadamente através de apreensões em estabelecimentos bancários, tais diligências de inquérito só possam efectivar-se após sua fundada legitimação pelo tribunal, se invocado pelos vinculados ao sigilo o respectivo segredo profissional, o que de facto aconteceu, in casu, com a recorrente «B………., SA», dispensando-a então do respectivo segredo.
Ora, sempre que tal aconteça e havendo fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa das informações solicitadas ou da recusa de apresentação dos objectos ou documentos cuja apreensão se busca, deve a autoridade judiciária, competente, mesmo oficiosamente, lançar mão do incidente previsto no artigo 135º do Cód. Proc. Penal, a ser decidido pelo tribunal imediatamente superior àquele onde foi suscitado.
No caso em apreço, só esta Relação seria competente para decidir da quebra do segredo profissional da recorrente e consequente obrigação na prestação das informações bancárias que lhe foram solicitadas, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 135º, 136º e 182º nº2 do Cód. Proc. Penal.
É pois manifestamente incompetente o tribunal de instrução criminal para decidir da dispensa de sigilo bancário para obtenção de informações por este abrangidas e bem assim para ordenar a apreensão da respectiva documentação das mesmas, se atempadamente invocado, como o foi, tal dever de segredo pelos respectivos vinculados.
A decisão recorrida padece inequivocamente de nulidade, nulidade esta que é insanável e mesmo de conhecimento oficioso, nos termos do artº119º alínea e) do Cód. Proc. Penal e que fulmina toda a ponderação em que se estriba e correspectiva notificação, nos termos ainda do disposto no artº122º do mesmo diploma legal."
2) A segunda decisão diz respeito a um tema muito interessante e que "aparece pouco" na jurisprudência: o enriquecimento sem causa. No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2006, proferido no processo n.º 0520142, entendeu-se que "(...) [t]rês tipos de situações se podem configurar no enriquecimento sem causa: o que for indevidamente recebido; o que for recebido por uma causa que deixou de existir; o que for recebido em vista de um efeito que se não verificou. O art.476.º n.º1 do CC contempla as situações de pagamento indevido ou de repetição do indevido, situações que tanto abrangem os casos em que a obrigação nunca existiu, como os casos em que a obrigação, tendo existido, já se encontrava extinta, e os casos em que a obrigação existia, mas com conteúdo inferior ao da prestação, caso este em que a condictio indebiti valerá quanto à diferença."
A decisão foi, aqui também, contrária à da primeira instância, seguindo-se, no essencial, o que Vaz Serra deixou escrito nos trabalhos preparatórios do Código Civil. Aqui fica a parte principal da fundamentação (com realçado das citações de jurisprudência e doutrina e ligação aos sumários dos acórdãos citados disponíveis online).
"Para que possa existir a obrigação de restituir com fundamento no enriquecimento sem causa, exige-se a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
a) existência de um enriquecimento;
b) falta de causa que o justifique;
c) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem pretende a restituição (certos autores referem-se ao nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento – Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem Causa, pg. 45, cit. in Ac.S.T.J. 23/4/98 Bol.374/370);
d) que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição – que não haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido um outro acto jurídico – ver Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I-2ªed.-pg.374 (cf., para o elenco dos citados requisitos, S.T.J. 14/5/96 Col.II-70).
Trata-se da obrigação romana de in rem verso: é de admitir nos casos em que o património de alguém se encontrar, sem causa legítima, enriquecido imediatamente à custa do património de outra pessoa e esta última não disponha de acção para a reposição desse seu património (o que os autores chamam a natureza subsidiária da obrigação de restituir – cf. S.T.J. 23/4/98 cit.), seja v.g. emergente de responsabilidade contratual ou emergente de responsabilidade aquiliana.
Aliás, como dispõe o artº 474º C.Civ.: “Não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido qualquer outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à indemnização ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Todavia, o artº 473º nº2 C.Civ. enumera três tipos de situações que são, por definição, integrantes do enriquecimento sem causa, a saber:
- o que for indevidamente recebido;
- o que for recebido por uma causa que deixou de existir;
- o que for recebido em vista de um efeito que se não verificou.
Interessa assim atentar na tipologia do artº 476º nº1 C.Civ., que contempla as situações de pagamento indevido ou de repetição do indevido (condictio indebiti).
Pressupõem o cumprimento de uma obrigação inexistente relativamente ao credor ou a terceiro.
Na definição do conteúdo desta obrigação, Vaz Serra, Bol.82/pgs. 5, 8, 19 e 24 (exposição de motivos), menciona quer os casos em que a obrigação nunca existiu, como os casos, tendo existido, já se encontrava extinta, e, finalmente, os casos em que a obrigação existia, mas com conteúdo inferior ao da prestação, caso este em que a condictio indebiti valerá quanto à diferença."
1) A primeira, proferida em processo penal, tem algum interesse prático: "o tribunal de instrução criminal é incompetente para decidir a quebra do sigilo bancário" (acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 20-12-2006, proferido no processo n.º 0615336), contrariando a posição do juiz de instrução e do MP, em primeira instância.
A fundamentação do acórdão é sucinta e segue-se com facilidade, pelo que se transcreve aqui, de seguida.
"Dispõe o art. 78° n°s 1 e 2 do Dec. Lei n°298/92 de 31-12 que os membros dos órgãos de administração ou de fiscalização das instituições de crédito, seus empregados, mandatários e outras pessoas que lhes prestem serviços (…) não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes (…) aos nomes dos clientes, às contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias, sendo certo que a situação dos autos se encontra abrangida por esse dever.
A violação desse dever pode integrar o crime de violação de segredo p. e p. pelo artº195° do Cód. Penal.
Quanto ao dever de segredo profissional, este é geralmente estabelecido tendo em conta o bom nome, a reputação e a reserva da vida privada das pessoas a quem aproveita, conjugados com o interesse, também privado, da protecção das relações de confiança entre as instituições financeiras e respectivos clientes.
Por seu turno, o inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e recolher as provas em ordem à decisão sobre a acusação (art. 262° do Cód. Proc. Penal).
Por isso que, quer em sede dos meios de prova, quer em sede dos meios de obtenção de prova, designadamente através de apreensões em estabelecimentos bancários, tais diligências de inquérito só possam efectivar-se após sua fundada legitimação pelo tribunal, se invocado pelos vinculados ao sigilo o respectivo segredo profissional, o que de facto aconteceu, in casu, com a recorrente «B………., SA», dispensando-a então do respectivo segredo.
Ora, sempre que tal aconteça e havendo fundadas dúvidas sobre a legitimidade da escusa das informações solicitadas ou da recusa de apresentação dos objectos ou documentos cuja apreensão se busca, deve a autoridade judiciária, competente, mesmo oficiosamente, lançar mão do incidente previsto no artigo 135º do Cód. Proc. Penal, a ser decidido pelo tribunal imediatamente superior àquele onde foi suscitado.
No caso em apreço, só esta Relação seria competente para decidir da quebra do segredo profissional da recorrente e consequente obrigação na prestação das informações bancárias que lhe foram solicitadas, nos termos das disposições conjugadas dos artºs 135º, 136º e 182º nº2 do Cód. Proc. Penal.
É pois manifestamente incompetente o tribunal de instrução criminal para decidir da dispensa de sigilo bancário para obtenção de informações por este abrangidas e bem assim para ordenar a apreensão da respectiva documentação das mesmas, se atempadamente invocado, como o foi, tal dever de segredo pelos respectivos vinculados.
A decisão recorrida padece inequivocamente de nulidade, nulidade esta que é insanável e mesmo de conhecimento oficioso, nos termos do artº119º alínea e) do Cód. Proc. Penal e que fulmina toda a ponderação em que se estriba e correspectiva notificação, nos termos ainda do disposto no artº122º do mesmo diploma legal."
2) A segunda decisão diz respeito a um tema muito interessante e que "aparece pouco" na jurisprudência: o enriquecimento sem causa. No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-12-2006, proferido no processo n.º 0520142, entendeu-se que "(...) [t]rês tipos de situações se podem configurar no enriquecimento sem causa: o que for indevidamente recebido; o que for recebido por uma causa que deixou de existir; o que for recebido em vista de um efeito que se não verificou. O art.476.º n.º1 do CC contempla as situações de pagamento indevido ou de repetição do indevido, situações que tanto abrangem os casos em que a obrigação nunca existiu, como os casos em que a obrigação, tendo existido, já se encontrava extinta, e os casos em que a obrigação existia, mas com conteúdo inferior ao da prestação, caso este em que a condictio indebiti valerá quanto à diferença."
A decisão foi, aqui também, contrária à da primeira instância, seguindo-se, no essencial, o que Vaz Serra deixou escrito nos trabalhos preparatórios do Código Civil. Aqui fica a parte principal da fundamentação (com realçado das citações de jurisprudência e doutrina e ligação aos sumários dos acórdãos citados disponíveis online).
"Para que possa existir a obrigação de restituir com fundamento no enriquecimento sem causa, exige-se a verificação simultânea dos seguintes requisitos:
a) existência de um enriquecimento;
b) falta de causa que o justifique;
c) que esse enriquecimento tenha sido obtido à custa de quem pretende a restituição (certos autores referem-se ao nexo de causalidade entre o enriquecimento e o empobrecimento – Moitinho de Almeida, Enriquecimento sem Causa, pg. 45, cit. in Ac.S.T.J. 23/4/98 Bol.374/370);
d) que o enriquecimento tenha sido obtido imediatamente à custa daquele que se arroga o direito à restituição – que não haja de permeio, entre o acto gerador do prejuízo dele e a vantagem alcançada pelo enriquecido um outro acto jurídico – ver Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I-2ªed.-pg.374 (cf., para o elenco dos citados requisitos, S.T.J. 14/5/96 Col.II-70).
Trata-se da obrigação romana de in rem verso: é de admitir nos casos em que o património de alguém se encontrar, sem causa legítima, enriquecido imediatamente à custa do património de outra pessoa e esta última não disponha de acção para a reposição desse seu património (o que os autores chamam a natureza subsidiária da obrigação de restituir – cf. S.T.J. 23/4/98 cit.), seja v.g. emergente de responsabilidade contratual ou emergente de responsabilidade aquiliana.
Aliás, como dispõe o artº 474º C.Civ.: “Não há lugar à restituição por enriquecimento quando a lei facultar ao empobrecido qualquer outro meio de ser indemnizado ou restituído, negar o direito à indemnização ou atribuir outros efeitos ao enriquecimento”.
Todavia, o artº 473º nº2 C.Civ. enumera três tipos de situações que são, por definição, integrantes do enriquecimento sem causa, a saber:
- o que for indevidamente recebido;
- o que for recebido por uma causa que deixou de existir;
- o que for recebido em vista de um efeito que se não verificou.
Interessa assim atentar na tipologia do artº 476º nº1 C.Civ., que contempla as situações de pagamento indevido ou de repetição do indevido (condictio indebiti).
Pressupõem o cumprimento de uma obrigação inexistente relativamente ao credor ou a terceiro.
Na definição do conteúdo desta obrigação, Vaz Serra, Bol.82/pgs. 5, 8, 19 e 24 (exposição de motivos), menciona quer os casos em que a obrigação nunca existiu, como os casos, tendo existido, já se encontrava extinta, e, finalmente, os casos em que a obrigação existia, mas com conteúdo inferior ao da prestação, caso este em que a condictio indebiti valerá quanto à diferença."
Etiquetas: enriquecimento sem causa, jurisprudência STJ, jurisprudência TRP, processo penal, sigilo bancário
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