quinta-feira, abril 19, 2007

Jurisprudência do Tribunal da Relação de Coimbra (parte 2 de 2)

1) Acórdão de 13-03-2007, proferido no processo n.º 473/03.0TMCBR-A.C1:
"Mercê do disposto no artº 1404º, nº 3, in fine, observam-se no inventário subsequente a divórcio, as regras que disciplinam o processo de inventário.
Do artº 1349º, nº 3, do CPC resulta que não reconhecendo o cabeça-de-casal a existência dos bens cuja falta foi acusada, uma vez indicadas as provas e efectuadas as diligências probatórias necessárias, o juiz decidirá da existência dos bens e da pertinência da sua relacionação ou, se considerar que a questão da titularidade dos bens requer profunda análise e averiguação, então abstém-se de proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns – artºs 1350º, nº 1, e 1336º, nº 2, CPC.
A relação especificada dos bens comuns apresentada no processo de divórcio (artº 1419º, nº 1) não determina quais os bens que hão-de ser objecto de partilha para os efeitos do artº 1345º CPC, sendo admissível o relacionamento de outros cuja falta ou exclusão dessa relação seja alegada ou reclamada"
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Nota - Trata-se de um problema curioso, este que aqui se levanta. Assenta simplesmente no seguinte: a relação dos bens comuns que os cônjuges apresentam no processo de divórcio vincula-os na futura partilha?
Antes de mais, posso adiantar que concordo com a decisão da Relação. Penso que tal relação de bens não os vincula para a futura partilha.
A solução da vinculação não me parece razoável, na prática, sendo frequente que as questões mais complexas da partilha apenas surjam no inventário. A relação dos bens comuns não importa uma declaração tácita de serem os únicos, nem a assunção de que outros não serão relacionados. Tal entendimento limitaria desproporcionadamente a própria função do inventário.
Mas então para que serve a relação dos bens comuns apresentada pelos cônjuges, se os não vincula?
Creio que a melhor resposta se encontra na fundamentação de uma outra decisão que, não se pronunciando sobre problema idêntico, acaba, curiosamente, por reconduzir-se à mesma questão de fundo. No acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra
de 16-12-2003, proferido no processo n.º 3305/03, analisou-se o seguinte: requerido o arrolamento, justifica-se a inutilidade superveniente da lide pelo simples facto de os cônjuges terem entregue uma relação de bens no processo de divórcio? Ora, para responder a esta pergunta, houve que decidir qual a função e o efeito daquela apresentação de bens. Nesta parte da fundamentação encontra-se uma boa reflexão que, ao fim e ao cabo, acaba por dar também a resposta ao problema da decisão anotada. Porque me parece que a fundamentação do dito acórdão de 16-12-2003 é particularmente feliz, aqui a transcrevo, na parte que interessa, manifestando a minha adesão. A extensão do texto (um pouco superior ao que é habitual nestas notas), parece-me justificada pelo seu interesse.
"Assim, a entrega de uma relação de bens num processo de divórcio tem o significado de um acordo ao nível do possível naquele momento, o que se harmoniza com o valor jurídico da relação de bens, mormente noutros processos.
E esta situação não traduz nenhuma atitude de deslealdade ou de má-fé processuais. Não pode dizer-se que haja alguma “reserva mental” na atitude de um ou dos dois interessados que entregam uma relação de bens incompleta porque o que pode estar em causa é a diferença entre os ritmos do processo judiciário e os do processo psicológico; no primeiro, traçados previamente e em abstracto, no segundo, de uma grande plasticidade. Então, conseguir-se um acordo parcial pode ser importante para este e não deve ser afastado ou diminuído por aquele, com o argumento de que as “formas” com que aquele trabalha só conhecem o acordo total ou a falta dele o que nem sequer é totalmente verdade, mas entrar nesse aspecto obrigaria a fugir demasiadamente da questão..
Não há nenhuma razão que obrigue a interpretar a entrega de uma relação de bens como uma situação de acordo global e completo: com segurança, só pode dizer-se que, no mínimo, é um acordo parcial - para além de não ser vinculativo.
A não ser que o contrário resulte do que for expressamente dito ou do contexto interpretativo.
(...)
a conversão nem significa que tenha sido conseguida uma pacificação real do ponto de vista jurídico - a relação de bens não vincula os ex-cônjuges - e muito menos do ponto de vista psicológico; pode acontecer que eles já estejam divorciados na perspectiva do primeiro e ainda o não estejam na do segundo bem como o contrário, obviamente.. E não se diga que isso não interessa ao direito porque a este deve interessar tudo, mormente a sua maior adequação possível à realidade material. Aquela observação só poderia ter interesse no que respeita ao requisito da alegação e prova do receio de dissipação ou extravio. Mas, quanto a este aspecto, o normal é o arrolamento já estar executado quando se chega à conversão; na situação sui generis deste processo, está ultrapassada a fase da alegação e o que interessa é prosseguir ou não o arrolamento.
Mas, teremos ainda de encarar uma outra questão: se for assim, por que razão a lei exige que os interessados juntem uma «relação especificada dos bens comuns, com indicação dos respectivos valores» artigo 1419º, nº 1, al. b) do Código de Processo Civil.? Na verdade, se essa relação não vincula os seus autores noutros processos e se pode não estar completa, podendo o processo prosseguir com discussão ulterior sobre a partilha dos bens, que razão justifica a exigência da entrega da relação de bens, para que possa haver divórcio por mútuo consentimento ou conversão para este?
Se disséssemos - como eventualmente dirão os que tenham entendimento diverso do aqui defendido - que, embora não vinculativa, a relação de bens tem de traduzir um acordo existente em determinado momento, acordo completo e inequívoco, por uma razão de lealdade, quer entre os interessados, com tutela pela autoridade judiciária, quer perante esta, dispensando-se tão só o acordo sobre a partilha dos bens, perece-nos que continuaria a haver um espaço de incompreensão por causa da falta de força vinculativa da própria relação de bens, e já não da partilha sobre eles. Que respeito e lealdade eram esses que permitiam que um ou os dois interessados acordassem para fugirem às desvantagens de um divórcio litigioso, podendo depois, ou sabendo que podiam depois, desacordarem e começarem a discutir!? E, salvo melhor opinião, é esta a realidade que a leitura das normas nos oferece!
A explicação está em que o legislador quer fomentar o acordo entre os interessados, mas não mais do que isso.
Neste momento, poderíamos “pegar” naquela nota em que dizemos que não é inteiramente verdade que o processo judiciário só conhece o “tudo ou nada” nota nº 18., para frisar que a auto-composição relativamente ao fim de um casamento é uma situação complexa, em que, muitas vezes, um resultado satisfatório só é possível com acordos parcelares e progressivos, quantas vezes com recuos e avanços, sem início e fim pré-definidos. Então, o papel do direito, quer por parte do legislador, quer do aplicador da lei, é, na medida do possível, ajustar-se a esse ritmo variável de caso para caso; ritmo que depende fundamentalmente do processo individual e relacional de cada um dos interessados, mas também de impulsos exógenos facilitadores. É assim que o legislador como que exorta os interessados a pensarem na questão dos bens a partilhar, como que a sugerir que eles iniciem um processo que acabará mais tarde, no processo de separação de bens, mas em que um bom final pode depender de um início atempado. No fundo, trata-se de uma técnica usada em mediação familiar, que é a de remeter os interessados para tarefas auto-responsabilizantes que ajudem a chegar ao resultado final; por exemplo, umas vezes, calculando, em concreto, as despesas dos filhos, a fim de facilitar o acordo quanto ao montante dos alimentos; neste caso, o de irem recolhendo os bens que hão-se ser divididos. É o judiciário a incentivar os interessados a tomarem a iniciativa de irem pensando na resolução dos seus problemas: se o processo psicológico já está avançado e não há muito litígio, os interessados já trarão uma lista completa, eventualmente definitiva; caso contrário, cada um dos interessados, acaba obrigado a encarar a questão da lista de bens a dividir, começando a pensar e a decidir-se quais relaciona. Daqui a chegar a uma relação completa e definitiva vai a distância que, quer o processo psicológico, quer o jurídico, permitem ou dificultam - este na letra e no espírito da lei"
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A solução, no acórdão de 16-12-2003, foi, consequentemente, no sentido da não extinção do arrolamento por inutilidade superveniente da lide. Do mesmo modo e, no fundo, com os fundamentos muito semelhantes, entendo ser correcta a decisão anotada.



2) Acórdão de 20-03-2007, proferido no processo n.º 3454/03.0TBLRA.C1:
"O Tribunal, singular ou colectivo, que julgue a matéria de facto não se pronuncia sobre os meios de prova com força probatória plena nem sobre os factos que só por um meio com essa força podem ser provados. Cabe-lhes apenas apreciar as provas sujeitas à livre apreciação do julgador, através das quais, no confronto entre elas, se forma a sua íntima convicção sobre os factos da causa.
Justifica-se a ausência dos factos provados por meios de prova com força probatória plena do despacho que fixou a matéria de facto dada como provada ou assente, mas já não se justifica essa não indicação no texto da sentença de mérito, concretamente no local em que esta peça processual procede ao elenco dos factos que vão servir de base à aplicação do direito e à decisão da causa.
Na sentença, o juiz deve considerar, além dos factos dados como provados e cuja verificação estava sujeita à livre apreciação do julgador, os outros factos cuja prova resulte da lei, isto é, da assunção de um meio de prova com força probatória pleníssima, plena ou bastante, independentemente de terem sido ou não dados como assentes na fase de condensação"
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Nota - É pacífico o que aqui se decidiu, face ao disposto nos artigos 659.º, n.º 3 do CPC, que separa: (i) factos admitidos por acordo; (ii) factos provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito; e (iii) factos que o tribunal colectivo deu como provados.
Como refere Lebre de Freitas, in Introdução ao Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra: Coimbra Editora, 2006, pág. 175, "a distinção entre meio de prova legal e meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador (meio de prova livre) leva a uma repartição de funções entre o juiz da matéria de facto e o juiz que profere a sentença".
O acórdão tem ainda outras indicações doutrinárias relevantes.



3) Acórdão de 13-03-2007, proferido no processo n.º 874/03.3TMAVR-B.C1:
"Perante a alteração das circunstâncias, admite-se a modificabilidade da decisão homologatória do acordo de atribuição da casa de morada de família no âmbito de processo de divórcio".

Nota - Trata-se de uma questão controvertida, na jurisprudência. Pela imodificabilidade (seguindo a recolha do acórdão anotado que, pelo que constatei, é bastante completa), encontramos os acórdãos da Relação de Lisboa, de 18-02-1993, proferido no processo n.º 0071432, com texto completo in CJ t. I, pág. 149, e de 13-02-2003, in CJ, tomo 1, pág. 101, da Relação do Porto de 17-02-2000, in CJ, tomo I, pág. 218 (na internet apenas se encontra o sumário) e de 05-05-2005, proferido no processo n.º 0531717, também in CJ, tomo III, pág. 160, do Tribunal da Relação de Guimarães de 07-05-2003, in CJ, t. III, pág. 279, e do Supremo Tribunal de Justiça de 02-10-2003, proferido no processo n.º 03B1727, também in CJ, t. III, pág. 74 (com um voto de vencido).
Para além destes citados, encontrei ainda, no mesmo sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 19-03-2002, proferido no processo n.º 02B555, do Tribunal da Relação do Porto de 22-11-2005, proferido no processo n.º 0525693, do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2001, proferido no processo n.º 0052456 (com um voto de vencido).
No sentido da decisão anotada, foram indicados na decisão os acórdãos da Relação do Porto,
de 30-09-2002, proferido no processo n.º 0250994, e da Relação de Lisboa, de 27-05-2003, proferido no processo n.º 00106767, com texto completo in CJ, t. III, pág. 91.
Para além destes, pode ler-se o d Tribunal da Relação do Porto de 26-10-2006, proferido no processo n.º 0634785, de 03-03-2004, proferido no processo n.º 0322808.
No acórdão agora anotado faz-se uma análise detalhada da jurisprudência oposta, cuja leitura se recomenda e aqui não vou, hoje, desenvolver. Ficará para outra oportunidade. No entanto, deve ser chamada a atenção para o facto de este prtoblema não se confundir: (i) com o da alteração do acordo provisório quanto ao destino da casa de morada de família na pendência do divórcio; nem, (ii) com o da atribuição do direito ao arrendamento a um dos cônjuges.

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