Tribunal Constitucional - Recolha de vestígios biológicos contra a vontade do arguido
Foi muito discutida a posição do Tribunal da Relação do Porto, tomada em pelo menos dois acórdãos recentes, no sentido de considerar admissível a recolha de vestígios biológicos do arguido para posterior análise de ADN.
Particularmente na revista online In Verbis e no blog Grande Loja do Queijo Limiano, houve trocas muito interessantes de argumentos, nas quais participei.
Manifestei, na altura, dúvidas sobre a compatibilidade com a Constituição da interpretação dada às normas pela Relação do Porto.
Pois bem, sobre este problema (e creio que precisamente num dos ditos acórdãos da Relação do Porto então comentados), veio agora pronunciar-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março (ainda não publicado no DR).
Um dever de verdade impõe-me a afirmação de que, após a leitura do acórdão, mudei a minha opinião. Anteriormente, como referi nos comentários disponíveis nas ligações supra citadas, ainda que com dúvidas, tendia a não aceitar a solução ditada pela Relação do Porto.
No entanto, fiquei convencido pela argumentação constante do referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março.
Note-se que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação dada às normas pela Relação do Porto, mas não por considerar inadmissível a recolha dos vestígios contra a vontade do arguido. A única censura do Tribunal Constitucional prendeu-se com a falta de autorização do juiz de instrução. No entanto, foi analisada a questão de fundo, admitindo o Tribunal Constitucional que, com tal autorização, a recolha não seria contrária aos preceitos constitucionais.
A fundamentação do acórdão é extensa, e aconselho a sua leitura a quem se interessar pela matéria. No entanto, pode sintetizar-se a sua estrutura nos seguintes pontos.
1. Antes de mais, o Tribunal Constitucional considerou que "a recolha de saliva através da utilização da técnica da zaragatoa bucal, sem efectivo recurso à força física mas realizada contra a vontade expressa do arguido e sob a ameaça de recurso à mesma, conflitua com o âmbito constitucionalmente protegido do seu direito à integridade pessoal". Logo ressalvou, no entanto, que tal não impediria que se pudesse considerar tal acto, em casos concretos, constitucionalmente legitimado.
2. Quanto ao princípio da proibição da auto-incriminação, concluiu que "o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo (...) o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação".
3. Parte-se depois para a análise do respeito pelos princípios de adequação, exigibilidade e proporcionalidade. Procedeu-se a tal análise considerando três questões separadas: a possibilidade de restrição dos direitos; a suficiência da habilitação legal; e a necessidade de autorização judicial.
4. À primeira responde afirmativamente: "Ora, independentemente da questão de saber qual é, do ponto de vista dogmático, a solução preferível, a verdade é que não pode seriamente duvidar-se – e, nessa conclusão, não existe discordância – que a Constituição autoriza, tendo em vista a prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional".
5. À segunda responde também afirmativamente, considerando que o quadro legal vigente, não sendo tão denso como seria desejável, não o é tão pouco ao ponto de merecer censura jurídico-constitucional: "Mas, se uma regulamentação genérica mais desenvolvida é possível e, porventura, desejável, o que não pode é, no caso concreto e perante a dimensão normativa verdadeiramente em causa, pelas razões que acima já foram enunciadas, censurar-se tal dimensão do ponto de vista jurídico-constitucional, por insuficiente densificação".
6. Como referi, conclui-se finalmente pela necessidade de autorização judicial para a recolha, em si mesma não censurável: "Face ao exposto, só pode concluir-se que, contendendo o acto em causa, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269º do Código de Processo Penal, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, da prévia autorização do juiz de instrução. E, nem se diga que será suficiente, como aconteceu nos presentes autos, uma intervenção a posteriori daquele juiz, tomada na sequência de requerimento apresentado após a decisão do Ministério Público que determinou a realização dos exames que agora estão em causa, uma vez que a mesma não poderia desfazer a restrição de alguns dos direitos (v.g., o direito à integridade física ou o direito à reserva da vida privada) entretanto irremediavelmente afectados com a medida".
Particularmente na revista online In Verbis e no blog Grande Loja do Queijo Limiano, houve trocas muito interessantes de argumentos, nas quais participei.
Manifestei, na altura, dúvidas sobre a compatibilidade com a Constituição da interpretação dada às normas pela Relação do Porto.
Pois bem, sobre este problema (e creio que precisamente num dos ditos acórdãos da Relação do Porto então comentados), veio agora pronunciar-se o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março (ainda não publicado no DR).
Um dever de verdade impõe-me a afirmação de que, após a leitura do acórdão, mudei a minha opinião. Anteriormente, como referi nos comentários disponíveis nas ligações supra citadas, ainda que com dúvidas, tendia a não aceitar a solução ditada pela Relação do Porto.
No entanto, fiquei convencido pela argumentação constante do referido acórdão do Tribunal Constitucional n.º 155/2007, de 2 de Março.
Note-se que o Tribunal Constitucional julgou inconstitucional a interpretação dada às normas pela Relação do Porto, mas não por considerar inadmissível a recolha dos vestígios contra a vontade do arguido. A única censura do Tribunal Constitucional prendeu-se com a falta de autorização do juiz de instrução. No entanto, foi analisada a questão de fundo, admitindo o Tribunal Constitucional que, com tal autorização, a recolha não seria contrária aos preceitos constitucionais.
A fundamentação do acórdão é extensa, e aconselho a sua leitura a quem se interessar pela matéria. No entanto, pode sintetizar-se a sua estrutura nos seguintes pontos.
1. Antes de mais, o Tribunal Constitucional considerou que "a recolha de saliva através da utilização da técnica da zaragatoa bucal, sem efectivo recurso à força física mas realizada contra a vontade expressa do arguido e sob a ameaça de recurso à mesma, conflitua com o âmbito constitucionalmente protegido do seu direito à integridade pessoal". Logo ressalvou, no entanto, que tal não impediria que se pudesse considerar tal acto, em casos concretos, constitucionalmente legitimado.
2. Quanto ao princípio da proibição da auto-incriminação, concluiu que "o direito à não auto-incriminação se refere ao respeito pela vontade do arguido em não prestar declarações, não abrangendo (...) o uso, em processo penal, de elementos que se tenham obtido do arguido por meio de poderes coercivos, mas que existam independentemente da vontade do sujeito, como é o caso, por exemplo e para o que agora nos importa considerar, da colheita de saliva para efeitos de realização de análises de A.D.N.. Na verdade, essa colheita não constitui nenhuma declaração, pelo que não viola o direito a não declarar contra si mesmo e a não se confessar culpado. Constitui, ao invés, a base para uma mera perícia de resultado incerto, que, independentemente de não requerer apenas um comportamento passivo, não se pode catalogar como obrigação de auto-incriminação. Assim sendo, não se pode sustentar, ao contrário do que pretende o recorrente, que as normas questionadas contendam com o privilégio contra a auto-incriminação".
3. Parte-se depois para a análise do respeito pelos princípios de adequação, exigibilidade e proporcionalidade. Procedeu-se a tal análise considerando três questões separadas: a possibilidade de restrição dos direitos; a suficiência da habilitação legal; e a necessidade de autorização judicial.
4. À primeira responde afirmativamente: "Ora, independentemente da questão de saber qual é, do ponto de vista dogmático, a solução preferível, a verdade é que não pode seriamente duvidar-se – e, nessa conclusão, não existe discordância – que a Constituição autoriza, tendo em vista a prossecução das finalidades próprias do processo penal e respeitadas as demais e já referidas exigências constitucionais, a restrição dos direitos fundamentais à integridade pessoal, à liberdade geral de actuação, à reserva da vida privada ou à autodeterminação informacional".
5. À segunda responde também afirmativamente, considerando que o quadro legal vigente, não sendo tão denso como seria desejável, não o é tão pouco ao ponto de merecer censura jurídico-constitucional: "Mas, se uma regulamentação genérica mais desenvolvida é possível e, porventura, desejável, o que não pode é, no caso concreto e perante a dimensão normativa verdadeiramente em causa, pelas razões que acima já foram enunciadas, censurar-se tal dimensão do ponto de vista jurídico-constitucional, por insuficiente densificação".
6. Como referi, conclui-se finalmente pela necessidade de autorização judicial para a recolha, em si mesma não censurável: "Face ao exposto, só pode concluir-se que, contendendo o acto em causa, de forma relevante, com direitos, liberdades e garantias fundamentais, a sua admissibilidade no decurso da fase de inquérito depende, pelas mesmas razões que justificam essa dependência no caso dos actos que constam da lista constante do artigo 269º do Código de Processo Penal, isto é, por consubstanciar intervenção significativa nos direitos fundamentais do arguido, da prévia autorização do juiz de instrução. E, nem se diga que será suficiente, como aconteceu nos presentes autos, uma intervenção a posteriori daquele juiz, tomada na sequência de requerimento apresentado após a decisão do Ministério Público que determinou a realização dos exames que agora estão em causa, uma vez que a mesma não poderia desfazer a restrição de alguns dos direitos (v.g., o direito à integridade física ou o direito à reserva da vida privada) entretanto irremediavelmente afectados com a medida".
Etiquetas: jurisprudência constitucional, processo penal
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