terça-feira, fevereiro 20, 2007

Princípio da adesão - análise de uma decisão

No acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 07-02-2007, proferido no processo n.º 0612241, li o seguinte sumário: "Em processo penal não há lugar a condenação em indemnizações com base em responsabilidade pelo risco".

Fiquei curioso, já que o sentido da decisão me pareceu um pouco surpreendente. Na fundamentação, segue-se a seguinte linha de raciocínio: o STJ uniformizou o entendimento, através da Jurisprudência n.º 7/99, de 17 de Junho, segundo a qual "se em processo penal for deduzido pedido cível, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no artigo 377.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, ou seja, a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade extracontratualou aquiliana, com exclusão da responsabilidade civil contratual". Daqui, a fundamentação no citado acórdão de 07-02-2007 dá imediatamente o salto para a seguinte conclusão: "o que leva a concluir que o processo penal é meio inadequado para conhecer de pedido civil que não tenha por causa de pedir o facto ilícito integrador do crime que é objecto do processo penal. Como acontece quanto à indemnização baseada na responsabilidade objectiva ou pelo risco resultante da utilização de veículos, prevista no art. 503º do Código Civil".

É precisamente este salto que não subscrevo, salvo melhor opinião. Na verdade, o que aquela jurisprudência uniformizadora exclui do processo penal é o julgamento do pedido de indemnização baseado em responsabilidade contratual. Ora, a responsabilidade pelo risco é ainda responsabilidade extracontratual - apenas prescinde da culpa. E mais: a lógica da jurisprudência uniformizadora foi de excluir as hipóteses em que o direito violado não era absoluto, mas sim relativo, ou, por outras palavras, em que o facto ilícito não se refere a um direito absoluto. No entanto, na responsabilidade pelo risco, de todos os requisitos do artigo 483.º do Código Civil, apenas se prescinde do requisito da culpa, mantendo-se intocado o requisito da ilicitude por violação de direito absoluto.
Mas não é só: lida com atenção a fundamentação da Jurisprudência n.º 7/99, torna-se evidente algo que as conclusões não mostram abertamente (por não se tratar da questão central) - a separação entre a responsabilidade contratual e por factos lícitos, por um lado (que o acórdão exclui do âmbito do processo penal) e da responsabilidade aquiliana ou pelo risco (que o acórdão inclui no âmbito do processo penal).
Finalmente, a decisão citada aparece destacada de uma imensidão de acórdãos que, em processo penal, aplicaram sem hesitação as normas da responsabilidade pelo risco. Vejam-se, por exemplo, os seguintes:
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 11-01-2006, proferido no processo n.º 0515934: "Portanto, por força do que se dispõe neste último normativo o juiz, apesar de absolver o arguido da acusação contra ele deduzida, deve condená-lo na indemnização civil, desde que o respectivo pedido, formulado com base nos factos da acusação, seja fundado, e, assim, procedente. E essa condenação deve o juiz proferi-la, quer a obrigação derive de facto ilícito extracontratual, quer se funde no risco, quer tenha por fonte violação de um qualquer direito subjectivo, seja ele um direito pessoal, seja antes um direito de crédito."
- Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 19-05-1999, proferido no processo n.º 9940384:
"O artigo 377 n.º 1 do Código de Processo Penal só tem aplicação quando esteja em causa a responsabilidade civil extracontratual ( fundada num facto ilícito ou no risco) e não também nos casos de responsabilidade civil fundada na existência de um contrato".
- Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 03-05-2005, proferido no processo n.º 6600/2004-5:
"A incerteza quanto a aspectos essenciais da dinâmica de um acidente de viação e do comportamento dos condutores dos veículos nele envolvidos impede a formulação de juízo de culpa, na produção do sinistro, em relação a qualquer deles, dando lugar à aplicação das normas que regem a obrigação de indemnizar com fundamento na responsabilidade pelo risco" (a decisão aplicou as normas da responsabilidade pelo risco).
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 07-06-2006, proferido no processo n.º 1148/06:
"Não suscita controvérsia o entendimento de que o pedido civil aderido ao processo penal deverá ter por base, isto é, ter como causa de pedir o facto ilícito gerador da responsabilidade civil extracontratual em que se fundeia a obrigação de indemnizar a cargo do autor do evento danoso. Decorre do predito entendimento que o tribunal terá, desde que o lesado haja deduzido pedido civil, ou nos casos em que as “particulares exigências da vitima o imponham” –cfr. art. 82º-A do CPP – que condenar desde que fique provada materialidade que integre os pressupostos donde mane a responsabilidade civil extracontratual, fundada na culpa, ou tão só no risco".
- Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 04-05-2005, proferido no processo n.º 942/05:
"A solução adoptada não contraria o decidido pelo Acórdão do STJ para fixação de jurisprudência n.º. 7/99 do STJ (DR IS-A de 03.08.99): Se em processo penal for deduzido pedido de indemnização civil, tendo o mesmo por fundamento um facto ilícito criminal, verificando-se o caso previsto no art. 377º, n.º1 do CPP, ou seja a absolvição do arguido, este só poderá ser condenado em indemnização civil se o pedido se fundar em responsabilidade civil extra-contratual.
Isto porque a indemnização, no caso, não assenta na responsabilidade contratual, mas, como acima se evidenciou, nos mesmos pressupostos da responsabilidade penal (acto ilícito) ainda que de âmbito menor, por prescindir apenas do pressuposto (dolo) bastando para a verificação da responsabilidade civil a mera culpa. Tal como sucede em caso de crime de homicídio negligente em que, ainda que não provada a culpa, deve o tribunal condenar em responsabilidade civil, se verificados os pressupostos da responsabilidade pelo risco, nos termos do art. 377º, n.º1 do CPP."
- Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 17-01-2006, proferido no processo n.º 2618/05-1:
"No nosso direito positivo, a questão da indemnização a fixar pela prática de um crime consiste no sistema da adesão obrigatória da acção civil à acção penal, com algumas excepções expressas na lei (artigos 71.º e 72.º do Código Penal).
Assim, no processo penal deve ser arbitrada indemnização não só quando os factos preenchem os requisitos da responsabilidade criminal, mas ainda quando, não existindo responsabilidade criminal, os factos preenchem os requisitos da responsabilidade civil conexa, de âmbito menor, seja com base em mera culpa negligente, mesmo com base em responsabilidade no risco, ficando apenas excluída a responsabilidade contratual."

Para terminar, diga-se que mal se compreenderia que, num julgamento, em processo penal, estando em causa um acidente de viação, absolvido que fosse o arguido do crime de homicídio por negligência, por não se ter provado a culpa, não se pudesse aproveitar toda a prova para condenar a seguradora a satisfazer a indemnização aos lesados e houvesse que remeter as partes para o processo civil (provavelmente, tal aconteceria já depois de esgotados os prazos de prescrição...).

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