quarta-feira, novembro 29, 2006

A dupla conforme e a reforma dos recursos em processo civil

A fazer fé nas informações que têm vindo a público, a alteração do regime dos recursos em processo civil impedirá o recurso para o STJ em caso de dupla conforme (cfr. aqui), salvo "quando existir um voto vencido na Relação ou quando o STJ entenda que se trata de um caso de relevância jurídico-social".

Mas o que será um caso "de relevância jurídico-social"? É aquele cuja previsível repetição torna mais importante a sua apreciação pelo STJ? É aquele em que estejam em causa bens jurídicos indisponíveis ou de valor jurídico mais elevado? Se a cláusula vier a ser formulada nestes termos, tenho alguma dificuldade em precisar-lhe os contornos.

Paradoxalmente, ou talvez não, encontro precisamente nas decisões do STJ que revogaram acórdãos da Relação que confirmaram decisões da primeira instância um interesse suplementar, reconhecendo-lhes um papel especial na densificação da jurisprudência. Aliás, o recurso da dupla conforme está, para o relator, as mais das vezes, facilitado pela fundamentação das duas instâncias ou, no caso de afastamento dos argumentos ou do sentido de decisão anteriores, logo se tornará especialmente relevante fixar jurisprudência sobre a matéria.

Reproduzo aqui um conjunto de decisões do STJ que alteraram o sentido da dupla conforme. Não os alinho por nenhum critério especial, nem os escolhi em função do tema, e desafio o leitor a escolher quais excluiria por não verificar o tal requisito de "relevância". Para além disso, olhando o caso concreto em cada um deles e tendo em conta as considerações supra expostas, tente isolar um interesse público de administração da justiça que justifique o afastamento da possibilidade de recurso em tais hipóteses, especialmente quando cotejado com o interesse da parte em recorrer (cumprindo os requisitos gerais de recorribilidade).

É claro que a toda esta argumentação se poderá objectar afirmando que são muitos mais os casos de dupla conforme que conduzem a "tripla conforme" do que os de alteração e que isso denota uma tendência para um uso excessivo do recurso, que importa temperar. A isto só poderemos responder com uma dupla interrogação: "o que vale o caso concreto, face a tudo isto?" e "o seu valor relevante poderá medir-se seguramente pelo critério da "relevância jurídico-social?".

Não tenho certezas. Tudo isto é para pensar.


- Acórdão do STJ de 06-07-2006, proferido no processo n.º 06A1765: "Em acção para reconhecimento da titularidade do direito às prestações por morte de beneficiários do regime da Segurança Social das pessoas que se encontrem na situação de união de facto, impende sobre o autor o ónus de alegar e provar que se encontra nas condições exigidas pelo art. 2020º do Código Civil;
(...)
- A impossibilidade de prestação de alimentos pelos familiares elencados no art. 2009º apresenta-se como um pressuposto ou condição substantiva da titularidade do direito às prestações a par das demais cumulativamente exigidas pelo art. 2020º-1, não configurando qualquer excepção, nomeadamente na modalidade de facto impeditivo, relativamente aos requisitos enunciados no primeiro segmento do preceito."


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Acórdão do STJ de 08-11-2005, proferido no processo n.º 05A3417: "Estando-se no domínio das relações imediatas (sacador-sacado) e pretendendo o autor provar através da data que apôs como emissão da letra, e que quesitada mereceu a resposta de non liquet, a anterioridade do seu crédito não é possível, sob a invocação da característica da literalidade da letra, alterá-la para «provado»."

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Acórdão do STJ de 08-11-2005, proferido no processo n.º 05A4653: "I - Destinando-se o andar arrendado a "boutique de senhora", não existe afectação do locado a fim diverso do contratado (artigo 64º n.º 1, alínea b) do RAU), se aí se vender roupa de senhora e se realizar pequena e artesanal confecção de alguma.
(..)
IV - O autor ao incorrer em contradição com comportamentos anteriores ("venire contra factum proprium"), pedindo que seja decretado o despejo por exercício de uma actividade que durante anos foi autorizada, e sem que tenha existido qualquer nova ocorrência ou alteração da situação existente, atenta contra a boa fé."


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Acórdão do STJ de 18-05-2004, proferido no processo n.º 04A4412: "II - A exploração comercial de uma piscina aberta ao público onde, independentemente da idade ou de uma eventual incapacidade, qualquer pessoa pode entrar mediante o pagamento de certa importância, impõe especiais cuidados por parte de quem usufrui dos proventos que a mesma proporciona.
III - A utilização da piscina por todos aqueles que pagarem o ingresso é, quando em funcionamento, uma actividade perigosa.
IV - A responsabilidade do proprietário só será assim excluída se provar que empregou todas as providências, todas as medidas e meios exigidos, para impedir um afogamento evitável na piscina de que é dono."


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Acórdão do STJ de 18-05-2004, proferido no processo n.º 02A2143: "A renúncia ao usufruto, como acto abdicativo, é mero negócio jurídico unilateral. A renúncia remunerada e orientada para determinado fim contém todos os elementos integrantes de um acto oneroso, de transmissão, ainda que atípico, subsumível à forma ampla a que a lei chamou de trespasse do direito."

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Acórdão do STJ de 21-05-1998, proferido no processo n.º 98B1043: "A usucapião considera-se invocada desde que se mostre alegado o complexo fáctico subjacente.
Tal invocação pode pois ser implícita ou tácita, se os factos alegados integrarem, de modo manifesto, os respectivos elementos ou requisitos constitutivos e revelarem a intenção inequívoca de fundar o seu direito na usucapião.
A usucapião implica sempre a existência de dois elementos: a posse e o decurso de certo período de tempo, tendo a posse de ser sempre pública e pacífica; os restantes caracteres (boa ou má-fé, título ou não título e registo ou não registo) apenas influem no prazo necessário para a prescrição aquisitiva."


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Acórdão do STJ de 07-01-1999, proferido no processo n.º 99B470: "1. Na legislação reguladora de farmácias o princípio fundamental é o da indivisibilidade entre a propriedade da farmácia e a sua exploração, e gerência técnica.
2. O direito social de requerer a anulação de deliberações sociais compete, no caso de quotas pertencentes a uma herança indivisa, ao conjunto de todos os herdeiros, sendo caso de litisconsórcio necessário activo."


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Acórdão do STJ de 26-10-1998, proferido no processo n.º 99A281: "Atenta a natureza excepcional do nº 1 do artigo 75º do RAU, no uso residencial do prédio arrendado, inclui-se o exercício de qualquer indústria doméstica, mas já não o exercício do comércio doméstico."

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