quinta-feira, novembro 22, 2007

Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça - um acórdão de "viragem" na responsabilidade civil (acidentes de viação)

Agradecendo, antes de mais, aos dois leitores que tiveram a amabilidade de me chamar a atenção para a decisão em causa, dou aqui notícia de um acórdão do Supremo Tribunal de Justiça que, rompendo com jurisprudência anterior deste tribunal, olha o concurso entre o risco e a culpa do lesado a uma nova luz.

Eis, antes de mais, o sumário do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
de 04-10-2007, proferido no processo n.º 07B1710:
"1. A causa de pedir, nas acções de indemnização por acidente de viação, é o próprio acidente, e abrange todos os pressupostos da obrigação de indemnizar. Se o autor pede em juízo a condenação do agente invocando a culpa deste, ele quer presuntivamente que o mesmo efeito seja judicialmente decretado à sombra da responsabilidade pelo risco, no caso de a culpa se não provar. E assim, mesmo que não se faça prova da culpa do demandado, o tribunal pode averiguar se o pedido procede à sombra da responsabilidade pelo risco, salvo se dos autos resultar que a vítima só pretende a reparação se houver culpa do réu.

2. De acordo com a jurisprudência e a doutrina tradicionais, inspiradas no ensinamento de Antunes Varela, em matéria de acidentes de viação, a verificação de qualquer das circunstâncias referidas no art. 505º do CC – maxime, ser o acidente imputável a facto, culposo ou não, do lesado – exclui a responsabilidade objectiva do detentor do veículo, não se admitindo o concurso do perigo especial do veículo com o facto da vítima, de modo a conduzir a uma repartição da responsabilidade: a responsabilidade pelo risco é afastada pelo facto do lesado.

3. Esta corrente doutrinal e jurisprudencial, conglobando na dimensão exoneratória do art. 505º, e tratando da mesma forma, situações as mais díspares – nas quais se englobam comportamentos mecânicos dos lesados, ditados por medo ou reacção instintiva, factos das crianças e dos inimputáveis, comportamentos de precipitação ou distracção momentânea, etc. – e uniformizando as ausências de conduta, as condutas não culposas, as pouco culposas e as muito culposas dos lesados, conduz, muitas vezes, a resultados chocantes.

4. Mostra-se também insensível ao alargamento crescente, por influência do direito comunitário, do âmbito da responsabilidade pelo risco, e da expressa consagração da hipótese da concorrência entre o risco da actividade do agente e um facto culposo do lesado, que tem tido tradução em recentes diplomas legais, que exigem, como circunstância exoneratória, a culpa exclusiva do lesado, bem como à filosofia que dimana do regime estabelecido no Cód. do Trabalho para a infortunística laboral.

5. O texto do art. 505º do CC deve ser interpretado no sentido de que nele se acolhe a regra do concurso da culpa do lesado com o risco próprio do veículo, ou seja, que a responsabilidade objectiva do detentor do veículo só é excluída quando o acidente for devido unicamente ao próprio lesado ou a terceiro, ou quando resulte exclusivamente de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo.

6. Ao concurso é aplicável o disposto no art. 570º do CC.

7. A este resultado conduz uma interpretação progressista ou actualista do art. 505º, que tenha em conta a unidade do sistema jurídico e as condições do tempo em que tal norma é aplicada, em que a responsabilidade pelo risco é enfocada a uma nova luz, iluminada por novas concepções, de solidariedade e justiça.

8. Ademais, na interpretação do direito nacional, devem ser tidas em conta as soluções decorrentes das directivas comunitárias no domínio do seguro obrigatório automóvel e no direito da responsabilidade civil, já que as jurisdições nacionais estão sujeitas à chamada obrigação de interpretação conforme, devendo interpretar o respectivo direito nacional à luz das directivas comunitárias no caso aplicáveis, mesmo que não transpostas ou incorrectamente transpostas.

9. Não pode, no caso concreto, concluir-se que o acidente é unicamente ou exclusivamente imputável à menor, condutora do velocípede, e que o veículo automóvel foi para ele indiferente, isto é, que a sua típica aptidão para a criação de riscos não contribuiu para a eclosão do acidente.

10. Na verdade, não obstante a actuação contravencional da menor, que manifestamente contribuiu para o acidente, a matéria de facto apurada permite também concluir que a estrutura física (as dimensões, a largura) do veículo automóvel, na ocasião timonado por uma condutora inexperiente, habilitada há menos de seis meses, está inelutavelmente ligada à ocorrência do acidente.

11. Na fixação da indemnização pelos danos não patrimoniais sofridos pela menor deve, depois de determinado o seu valor, de acordo com a equidade, fazer-se funcionar o critério da repartição do dano, nos termos do art. 570º do CC, não se perdendo de vista a própria condição da vítima, decorrente da sua idade, ao tempo da produção do dano, não podendo valorar-se a sua conduta causal por critério igual ao que seria aplicável a um ciclista adulto."


A decisão não foi unânime, mas as divergências não incidiram sobre o ponto que, à partida, eu esperaria, como explicarei adiante.
Sigamos a sua fundamentação.
O acórdão começa por admitir que tem sido pacífico na jurisprudência o entendimento segundo o qual "não pode haver concurso de responsabilidades do lesado, a título de culpa, e do titular da direcção efectiva do veículo, assente no risco", para logo levantar a hipótese de tal entendimento, nas palavras de José Carlos Brandão Proença, Responsabilidade pelo risco do detentor do veículo e conduta do lesado: a lógica do “tudo ou nada”?, in
Cadernos de Direito Privado, n.º 7 (Julho/Setembro de 2004), pág. 25, assentar numa "compreensão lógico-formal dos textos legais, de sabor cristalizado, com rejeição de um pensamento jurídico moderno, actualizado, e que faz da tutela dos lesados no tráfego rodoviário o seu leitmotiv".

O entendimento até agora pacífico na jurisprudência assenta no ensinamento de Antunes Varela, tendo vindo a ser posto em causa por outros autores, citados na decisão, a saber:
- Vaz Serra, que defendeu, nos trabalhos preparatórios do Código Civil, a solução do concurso entre o risco e a culpa do lesado, não tendo sido acolhida a sua proposta de redacção, tendo todavia continuado a entender que a mesma solução é defensável em face das normas actualmente vigentes;
- José Carlos Brandão Proença, no estudo citado, e também na obra
"A Conduta do Lesado Como Pressuposto e Critério de Impugnação do Dano Extracontratual", Coimbra: Almedina, 1997;
- Calvão da Silva, designadamente em anotação a acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 01-03-2001, in
RLJ ano 134.º, pp. 112 e ss., invocando este autor várias normas previstas em legislação avulsa sobre responsabilidade civil, nos termos das quais só a culpa exclusiva do lesado afasta a responsabilidade pelo risco;
- Sinde Monteiro,
"Responsabilidade civil", in Revista de Direito e Economia, ano IV, n.º 2, Jul./Dez. 1978, pág. 313 e ss., e "Responsabilidade por culpa, responsabilidade objectiva, seguro de acidentes : proposta de alteração ao Código civil e ao D.L. nº 408/79, de 25 de Setembro : considerações em torno da criação de um seguro social de acidentes de trabalho e de trânsito", in Revista de Direito e Economia, ano V, n.º 2, Jul./Dez. 1979, pág. 317 e ss. e ano VI/VII, 1980/1981, pág. 123 e ss.;
- Ana Prata,
"Responsabilidade civil : duas ou três dúvidas sobre ela", in Estudos em comemoração dos cinco anos (1995-2000) da Faculdade de Direito da Universidade do Porto, Coimbra: Almedina, 2001, p. 346 e ss.;
- Almeida Costa, que alterou a sua posição, a partir da
10.ª edição (Almedina: 2006) de "Direito das Obrigações", a pp. 639, posição que, até então, era semelhante à de Antunes Varela; e
- Américo Marcelino,
"Acidentes de Viação e Responsabilidade Civil", 8.ª edição, Lisboa: Petrony, 2007, pp. 309 e ss..

Refere-se, também, alguma jurisprudência do Tribunal de Justiça da Comunidade sobre as várias directivas do seguro automóvel, sendo de salientar, a meu ver, o
acórdão proferido no processo n.º C‑356/05, no caso Elaine Farrell, no qual se considera que "uma legislação nacional, definida em função de critérios gerais e abstractos, não pode negar ou limitar de forma desproporcionada a indemnização de um passageiro apenas com o fundamento de que este contribuiu para a produção do dano. Com efeito, só em circunstâncias excepcionais é possível, com base numa apreciação individual e no respeito do direito comunitário, limitar a extensão de tal indemnização". O mesmo entendimento será de manter quando o lesado não for passageiro, já que esta qualidade não foi determinante para o juízo subjacente a esta decisão.

O retrato do acórdão não fica, porém, completo sem a análise das declarações de voto.
A decisão não foi unânime (três contra dois), mas, lidas as ditas declarações de voto, conclui-se que elas não põem em causa a principal conclusão do acórdão: a culpa do lesado pode concorrer com a responsabilidade pelo risco.
- A primeira declaração apoia a decisão, apenas entendendo o seu subscritor que: (i) deveria o tribunal ter optado pelo reenvio prejudicial; e (ii) não se tendo assim decidido quanto ao reenvio, a lesada era merecedora de protecção neste caso, embora com recurso a fundamentação um pouco diferente da que consta da fundamentação do acórdão.
- A declaração dos conselheiros vencidos também não coloca em causa aquela conclusão. Apenas entenderam os seus subscritores que "o sinistro foi (...) devido, unicamente, a culpa grave da lesada, a infeliz autora, para a eclosão do acidente de viação não tendo, consequentemente, contribuído o risco próprio do veículo automóvel".

Sou sensível aos argumentos do acórdão e sinto-me por eles convencido. Para além da argumentação jurídica "pura e dura" e do papel do direito comunitário na discussão, impressiona-me, em particular, a lógica dualista (o "tudo ou nada" de que fala Brandão Proença) para a qual o tribunal é atirado com a interpretação até agora prevalecente no STJ. Pergunto-me, aliás, se este dualismo não levará, por vezes, na prática, o tribunal a ceder à tentação de não ter em conta a culpa diminuta do lesado, para evitar uma injustiça gritante resultante da negação da indemnização (quando não se prove a culpa do condutor). Não o fará, talvez, o juiz, quase inconscientemente, impressionado pela iniquidade que validaria com uma decisão de improcedência do pedido indemnizatório?

Aguardo, a partir de agora, pelos "ecos" desta decisão na futura jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça.
Para os estimados leitores, aqui fica a nota de tudo isto, para reflexão.

Etiquetas:

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]


Página Inicial