sexta-feira, setembro 21, 2007

O "caso" da alínea o) do artigo 6.º do Código das Custas Judiciais: uma aventura pela jurisprudência constitucional

Há alguns meses atrás, o advogado Pedro Jacobetty Vieira, leitor deste blog, chamou-me a atenção para um problema: o valor da causa, na impugnação do indeferimento do apoio judiciário, é o da acção principal, nos termos da alínea o) do artigo 6.º do CCJ.
Um tal regime pode originar algumas situações de certa injustiça, pois exigir-se-á a quem defende o direito ao apoio o pagamento da taxa calculada com base num valor que não se discute naquele momento (o da acção), podendo este ser muito elevado e comprometer, na prática, as possibilidades de reacção do requerente do apoio (que alega, precisamente, não poder suportar a dita taxa). Seria mais equilibrado considerar que o valor da impugnação é o da taxa cusa isenção de pagamento se pretende, sendo este, aliás, o único benefício que o recorrente retira do acolhimento da sua pretensão.
Na altura em que pensei com mais tempo neste problema, respondi ao Dr. Pedro Jacobetty Vieira que não conhecia jurisprudência sobre o assunto (existia, contudo, uma decisão de 2006 e uma outra, de 1996, sobre norma semelhante do anterior Código das Custas Judiciais, como se verá adiante).
Entretanto, alguns problemas concretos de aplicação da alínea o) do artigo 6.º do CCJ foram chegando ao Tribunal Constitucional.

1) No
acórdão n.º 420/2006, de 11 de Julho, decidiu-se "julgar inconstitucionais, por violação do artigo 20º, n.º 1, da Constituição, as normas dos artigos 6º, n.º 1, alínea o), 14º, n.º 1, alínea a), 23º, n.º 1, 24º, n.º 1, alínea c), 28º e 29º do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 224-A/96, de 26 de Novembro, na redacção emergente do Decreto-Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro, quando interpretadas no sentido de que a impugnação judicial da decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário não está dispensada do pagamento prévio da taxa de justiça inicial, calculada com referência ao valor da causa principal, e determinando a omissão do pagamento o desentranhamento da alegação apresentada e a preclusão da apreciação jurisdicional da impugnação deduzida". Entendeu-se, em suma, que "ao condicionar a viabilidade do recurso jurisdicional ao prévio pagamento da taxa de justiça devida – calculada com referência ao valor da causa principal – introduziu o legislador uma restrição excessiva e desproporcionada ao direito fundamental consagrado no n.º 1 do artigo 20º, inviabilizando o acesso à justiça – desde logo, para questionar a decisão administrativa – a quem esteja efectivamente carenciado de meios económicos para suportar o prévio pagamento da taxa de justiça devida pela impugnação", isto porque "se a resolução da questão da insuficiência de meios económicos para suportar os custos de um processo estiver, ela própria, condicionada ao pagamento de uma taxa de justiça prévia, imperioso se torna concluir que os requerentes de apoio judiciário que não possuam tais meios – e não pode obviamente excluir-se a hipótese de existirem requerentes nessa situação, a quem a Administração indevidamente negou o apoio judiciário – nunca têm acesso aos tribunais, quer para discutir o acerto da decisão administrativa que lhes indeferiu o pedido de apoio judiciário, quer para, em última análise, sustentarem em juízo as suas pretensões" e "o direito de acesso aos tribunais consagrado no artigo 20º, n.º 1, da Constituição pressupõe, desde logo, que tal acesso não seja dificultado em função da condição económica das pessoas, o que necessariamente sucede quando a lei constrange o particular a acatar a decisão administrativa proferida a propósito dessa mesma condição económica, unicamente porque não tem meios económicos para obter a sua reapreciação judicial".
Esta decisão contou com o voto de vencido do conselheiro Carlos Pamplona de Oliveira, que entendeu que a Constituição não garante sempre o acesso gratuito à justiça (o que, salvo melhor opinião, ali não se discutia) e que o acórdão não apreciou o valor concreto da taxa de justiça devida no processo em causa.
Foi o primeiro acórdão a pronunciar-se directamente sobre o problema à luz do CCJ actual, se os meus registos não falham.

2) O segundo foi o
n.º 255/2007, de 30 de Março (do qual dei conta aqui). Ali se decidiu, por unanimidade, "julgar inconstitucional, por violação do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, um e outro da Lei Fundamental, a norma vertida na alínea o) do nº 1 do artº 6º do vigente Código das Custas Judiciais, na parte em que tributa em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário". Entendeu-se dar razão ao recorrente, aderindo à sua argumentação, que era a seguinte: "a atribuição de um valor tributário desproporcionado ao recurso, através do qual se impugna o indeferimento administrativo, total ou parcial, do pedido de apoio judiciário, constituirá naturalmente num factor inibitório ao exercício do direito de impugnação, decorrente da ponderação do valor das custas no caso de um possível e eventual decaimento: e tais riscos de sucumbência são particularmente evidentes em situações em que a eventual insuficiência económica do requerente não é absoluta, radicando antes numa – sempre delicada – ponderação ou comparação entre o valor excepcionalmente elevado do litígio subjacente à causa principal e o montante dos rendimentos efectivamente auferidos pelo requerente; na verdade, embora estes não o coloquem numa situação de insuficiência económica total ou absoluta (que o impedisse, nomeadamente, de litigar em acções de pequeno ou médio valor) poderão constituir fundado obstáculo ao pleno exercício de uma actividade processual em acções de valor muito elevado, em que o interessado se possa ver envolvido, estando desprovido, apesar dos rendimentos que aufere, de meios pecuniários suficientes para fazer frente às acrescidas despesas que as mesmas envolvem”, dizendo, mais adiante, que “a atribuição ao recurso interposto da decisão desfavorável da Segurança Social de valor idêntico ao dos interesses controvertidos na causa principal pode perfeitamente funcionar como factor inibidor a que o requerente, insatisfeito com a decisão negativa da Segurança Social, exerça o direito de a impugnar em juízo, provocando uma decisão jurisdicional sobre a matéria da efectividade do acesso à justiça – atento o desproporcionalmente elevado montante das custas devidas, se o tribunal, porventura, julgar aquela impugnação, no todo ou em parte, improcedente", acrescentando-se ainda que "no sistema anterior (ao de que veio a ficar consagrado após a Lei nº 30-E/2000, já revogada pela Lei nº 34/2004, de 29 de Julho, mas, no que ora interessa, manteve o sistema daquela primeira), não só o montante da taxa era, pelo menos, duas vezes inferior, como, no caso de recurso da decisão primitiva de não concessão da então denominada assistência judiciária – decisão essa que cabia ao juiz – a taxa ainda era reduzida (cfr. artº 35º do Código das Custas Judiciais anterior ao aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96), sendo que se não vislumbram razões conexionadas com direitos ou interesses constitucionalmente protegidos para o acréscimo hoje surpreendido".

3) Seguiu-se o
acórdão n.º 299/2007, de 15 de Maio, pelo qual, também por unanimidade, se julgou "inconstitucional a norma contida na alínea o) do nº 1 do artigo 6º do Código das Custas Judiciais, na parte em que tributa em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário, por violação do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, da Constituição da República Portuguesa", aderindo, no essencial, à argumentação que já constava do anterior acórdão n.º 255/2007, de 30 de Março.

4) Mais recentemente, no
acórdão n.º 404/2007, de 11 de Julho, perfilhou-se um entendimento algo diferente, embora na decisão se tenha defendido que o caso apreciado não era análogo ao dos dois acórdãos anteriores. A decisão foi de "não julgar inconstitucional a norma do artigo 6.º, n.º 1, alínea o), do Código das Custas Judiciais, aprovado pelo Decreto‑Lei n.º 224‑A/96, de 26 de Novembro, na versão originária, que considerava como valor tributário do incidente de apoio judiciário o da respectiva causa principal".
A decisão em análise começa por citar o
acórdão n.º 495/96, de 20 de Março (cujas palavras finais entendi - e continuo a entender - como de apoio a quem defende a inconstitucionalidade da norma), fazendo notar que ali se concluiu pela não inconstitucionalidade da norma do artigo 8.º, n.º 1, alínea v) do anterior CCj, segundo a qual o valor tributário dos processos de “as­sistência judiciária” era o da “acção a que respeitam”. Conclui, depois, em suma, que a norma não é inconstitucional, aderindo aos fundamentos daquele outro acórdão e concluindo que a hipótese não é semelhante à dos acórdãos n.º 420/2006, de 11 de Julho, n.º 255/2007, de 30 de Março e n.º 299/2007, de 15 de Maio. Quanto ao primeiro, entendeu-se que se centrou "sobre diversa questão (os efeitos processuais da falta de pagamento da taxa de justiça inicial)", e "e os dois últimos (que julgaram inconstitucional, por violação do n.º 1 do artigo 20.º, em conjugação com o artigo 18.º, da CRP, a norma vertida na alínea o) do n.º 1 do artigo 6.º do vigente CCJ, na parte em que tributa em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário) incidi­ram sobre redac­ção desse diploma (a emergente do Decreto‑Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro), que não inseriu, nos actuais artigos 14.º e 15.º, relativos às reduções das taxas de justiça, normas equi­valentes às das anteriores alínea o) do n.º 1 do artigo 15.º (que reduzia a 1/4 a taxa de justiça nos incidentes de apoio judiciário) e n.º 2 do mesmo preceito (que redu­zia a 1/8 a taxa de jus­tiça quando, nos casos previstos no número anterior, não houvesse ou não fosse admissível oposição, podendo o juiz, justificadamente, reduzi‑la até metade de 1 UC)".
Ou seja, considerou-se determinante, aqui, a possibilidade conferida ao juiz (no CCJ com a redacção anterior à conferida pelo Decreto‑Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro), de reduzir a taxa de justiça.

A posição do Tribunal Constitucional, sobre a alínea o) do CCJ, pode, então, resumir-se, ao seguinte:
- considera-se inconstitucional a dita norma, no CCJ com a redacção emergente do Decreto‑Lei n.º 324/2003, de 27 de Dezembro (cfr. acórdãos
n.º 255/2007, de 30 de Março e n.º 299/2007, de 15 de Maio);
- não se considera inconstitucional a mesma norma, no CCJ com a redacção anterior à que lhe foi conferida por aquele Decreto-Lei, por se considerar que, consagrando-se então a possibilidade de redução de custas (a um quarto ou um oitavo), a compressão dos direitos do requerente não será intolerável (cfr.
acórdão n.º 404/2007, de 11 de Julho).

Concordando com os acórdãos
n.º 255/2007, de 30 de Março e n.º 299/2007, de 15 de Maio, não fiquei muito convencido com a fundamentação do acórdão acórdão n.º 404/2007, de 11 de Julho, pelas razões que, resumidamente, passo a expor.
- Parece-me que a questão de base continua a ser a mesma, ainda que o juiz possa reduzir a taxa de justiça: se a taxa for muito alta o seu valor pode condicionar o exercício do direito do recorrente. A redução, numa taxa muito elevada, pode facilmente revelar-se insuficiente.
- Sendo verdade que o acórdão
n.º 420/2006, de 11 de Julho, se pronunciou "sobre diversa questão (os efeitos processuais da falta de pagamento da taxa de justiça inicial)", não é menos verdade que, na sua fundamentação, se encontram considerações dificilmente compatíveis com as do acórdão n.º 404/2007, de 11 de Julho (por exemplo, estas: "Na verdade, se a resolução da questão da insuficiência de meios económicos para suportar os custos de um processo estiver, ela própria, condicionada ao pagamento de uma taxa de justiça prévia, imperioso se torna concluir que os requerentes de apoio judiciário que não possuam tais meios – e não pode obviamente excluir-se a hipótese de existirem requerentes nessa situação, a quem a Administração indevidamente negou o apoio judiciário – nunca têm acesso aos tribunais, quer para discutir o acerto da decisão administrativa que lhes indeferiu o pedido de apoio judiciário, quer para, em última análise, sustentarem em juízo as suas pretensões").
- O mesmo se diga quanto aos acórdãos
n.º 255/2007, de 30 de Março e n.º 299/2007, de 15 de Maio, que, apesar de se debruçarem sobre outra redacção do CCJ (mas não da norma em apreço), contêm considerações que não perdem o valor perante a possibilidade concreta de redução da taxa (que o juiz pode não usar, como aconteceu no caso objecto do acórdão acórdão n.º 404/2007, de 11 de Julho). Eis algumas dessas considerações: "a atribuição ao recurso interposto da decisão desfavorável da Segurança Social de valor idêntico ao dos interesses controvertidos na causa principal pode perfeitamente funcionar como factor inibidor a que o requerente, insatisfeito com a decisão negativa da Segurança Social, exerça o direito de a impugnar em juízo, provocando uma decisão jurisdicional sobre a matéria da efectividade do acesso à justiça – atento o desproporcionalmente elevado montante das custas devidas, se o tribunal, porventura, julgar aquela impugnação, no todo ou em parte, improcedente".
- Finalmente, sendo verdade que é o próprio acórdão n.º
n.º 255/2007, de 30 de Março, que invoca como fundamento do seu juízo de inconsticionalidade, por comparação, a possibilidade de redução da taxa que o regime anterior previa, não é menos verdade que tal argumento é apenas um entre outros constantes do dito acórdão, aliás usado juntamente com outro, que se mantém aplicável: o elevado valor das taxas ("não só o montante da taxa era, pelo menos, duas vezes inferior, como, no caso de recurso da decisão primitiva de não concessão da então denominada assistência judiciária – decisão essa que cabia ao juiz – a taxa ainda era reduzida (cfr. artº 35º do Código das Custas Judiciais anterior ao aprovado pelo Decreto-Lei nº 224-A/96), sendo que se não vislumbram razões conexionadas com direitos ou interesses constitucionalmente protegidos para o acréscimo hoje surpreendido").

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