sábado, maio 12, 2007

Jurisprudência constitucional

Dois acórdãos recentes do Tribunal Constitucional (ainda não publicados no DR) merecem uma referência. O primeiro tem aqui o seu lugar natural, pois julga inconstitucional uma norma do CPC. O segundo, não incidindo sobre normas de direito processual civil, tem uma importância prática (por vezes, até socialmente dramática) que me leva a transcrevê-lo também.

- No acórdão n.º 277/2007, de 2 de Maio de 2007, foi julgada inconstitucional "por violação do direito de acesso aos tribunais e o princípio do processo equitativo, consagrados nos n.ºs 1 e 4 do artigo 20.º da Constituição da República Portuguesa, a interpretação da norma do n.º 2 do artigo 912.º do Código de Pro­cesso Civil, na redacção anterior ao Decreto‑Lei n.º 38/2003, de 8 de Março, segundo a qual só se considera validamente exercido o direito de remição, por um descendente do execu­tado, no acto de abertura e aceitação das propostas em carta fechada, se for acompanhado do depó­sito da totalidade do preço oferecido na proposta aceite".

Nota - Embora os recorrentes tenham centrado o seu recurso na violação da incumbência constitucional de o Estado, para protecção da família, promover a independência social e económica dos agrega­dos familiares (artigo 67.º, n.º 2, alínea a), da CRP), o TC entendeu que a norma deveria ser apreciada à luz do princípio do acesso ao direito e aos tribunais. Considerou-se, na linha de Lopes do Rego, que as regras processuais devem obedecer a um "princípio da funcionalidade e proporcionalidade dos ónus, cominações e preclusões impostas pela lei de processo às partes" que "pode fundar‑se cumulativa­mente no princípio da proporcionalidade das restrições (artigo 18.º, n.ºs 2 e 3, da Constitui­ção) ao direito de acesso à justiça, quer na própria regra do processo equita­tivo".
Invocando jurisprudência recente (acórdão n.º 179/2007), sustentou-se então que
"o juízo de proporcionalidade a emitir neste domínio tem de tomar em conta três vectores essenciais: (i) a justificação da exigência processual em causa; (ii) a maior ou menor onerosidade na sua satisfação por parte do interessado; e (iii) a gravidade das con­sequências ligadas ao incumprimento do ónus".
Vertendo esta análise no caso concreto, o caminho para a decisão foi o seguinte:
"O ónus de o remidor depositar, para exercitar validamente o direito de remição, a totalidade do preço por que tenha sido feita a adjudicação ou a venda, não é, à partida, desajustado, uma vez que visa acautelar, com plena eficácia, os interesses dos credores, designadamente do exequente, e afastar o risco de declarações de exercício do direito de remição não sérias ou não consistentes. E nem se poderá considerar intoleravelmente pesado desde que seja concedido ao remidor o tempo minimamente suficiente para se habilitar a efectuar tal depósito. É o que sucederia se, por exemplo, no presente caso, uma vez conhecido o valor de venda do bem, correspondente à proposta aceite, à recorrente tivesse sido facultado o exercício do direito de remição até ser proferido despacho de adjudicação do bem ao propo­nente, o que sempre lhe concederia tempo (recorde‑se que ao proponente vencedor foi conce­dido o prazo de 15 dias para proceder ao depósito do preço e que o despacho de adjudicação só poderia ser proferido após, para além do depósito do preço, se mostrarem satisfeitas as obrigações fiscais inerentes à transmissão).
Não foi este, porém, o critério normativo seguido pelas instâncias, mas antes o de que, manifestada pelo familiar do requerente a decisão de exercitar o direito de remição, na sequência de interpelação que oficiosamente lhe foi dirigida no próprio acto de abertura e aceitação das propostas, a constatação da impossibilidade de, nesse momento, proceder ao depósito da totalidade do preço implica que se considera invalidamente exercido, e definiti­vamente precludido, o direito de remição.
Este ónus, assim delineado e com as consequências que se lhe associaram, viola o aludido princípio da proporcionalidade, quer por se revelar excessivamente pesada a sua satisfação, quer atenta a extrema gravidade dessas consequências. Desde logo, é desco­nhecido, à partida, o montante do depósito a efectuar: no presente caso, sendo o valor base do bem de € 259 200,00, a recorrente terá sido surpreendida com a exigência de depositar, de imediato, € 481 350,00, valor da proposta aceite. Depois, a exigência de efectivação do depó­sito no próprio momento em que se exercita o direito de remissão inviabiliza, na prática, o recurso à banca, quer para emissão de cheque visado quer para eventual concessão de crédito, sendo sabido que o custo de uma e de outro varia consoante o montante em causa. Final­mente, a consequência associada ao reconhecimento da impossibilidade de proceder ao depó­sito da integralidade do preço é manifestamente desproporcionada, pois se traduz na perda definitiva e irreversível do direito de remição, ocorrida, aliás, numa altura em que ainda não se teria esgotado o prazo “normal” para o seu exercício (até à prolação do despacho de adju­dicação), não fora a “interpelação” feita no próprio acto de abertura e aceitação das propostas.
Por todas estas razões se considera que o critério normativo acolhido na deci­são ora recorrida viola o artigo 20.º, n.ºs 1 e 4, da CRP".


- No acórdão n.º 275/2007, de 2 de Maio de 2007, foi julgada inconstitucional "por violação do princípio da proporcionalidade conju­gado com o artigo 59.º, n.º 1, alínea e), da Consti­tuição da República Portuguesa, a norma do artigo 61.º, n.º 1, do Decreto‑Lei n.º 119/99, de 14 de Abril, interpretado no sentido de que o incumprimento do prazo de 90 dias consecutivos a contar da data do desemprego para o inte­ressado requerer à Segurança Social a atribuição do subsídio de desemprego deter­mina a irremediável preclusão do direito global a todas as prestações a que teria direito durante todo o período de desemprego involuntá­rio".

Nota - A importância desta decisão não necessita de explicação. Aqui deixo nota do essencial da sua fundamentação, com uma chamada de atenção para os perigos de, repetidamente, se legislar nos limites da constitucionalidade.
"Nem a decisão recorrida nem o recorrente questionam que o retardamento injusti­ficado na apresentação do requerimento pelo interessado – iniciando ou impulsionando o procedimento de verificação pela Segurança Social dos pressupostos ou condições da atri­buição das prestações – possa fazer caducar ou precludir as prestações parcelares que entre­tanto se poderiam ter vencido. O que se reputa inconstitucional, por desproporcionado, é o entendimento segundo o qual qualquer atraso no cumprimento do referido prazo peremptório de 90 dias dita a irremediável caducidade do direito global a todas as prestações.
Como refere o recorrente, não se vê que as razões de segurança jurídica, subja­centes ao estabelecimento de prazos de caducidade, sejam suficientes para – com base em qualquer “mora” do trabalhador desempregado – o privar, na totalidade, da percepção de todas as prestações pecuniárias substitutivas das remunerações salariais perdidas durante o período em que lhe deveriam ser concedidas, perdurando a situação de desemprego involuntá­rio: a circunstância de a autora ter formulado a sua pretensão perante a Segurança Social ape­nas em 19 de Novembro de 2002 (quando o deveria ter feito até 9 de Agosto de 2002) não é susceptível de dificultar, de modo relevante, a actividade procedimental cometida à Segurança Social no âmbito do procedimento em causa, destinada essencialmente a ajuizar da existência dos pressupostos e condições do direito às prestações de desemprego e calcular a respectiva duração e montante – sendo certo que tal “mora” dos trabalhadores sempre ditará a preclusão ou caducidade das prestações parcelares que se teriam vencido até à referida data de apresen­tação do requerimento.
A estas considerações – que se sufragam – apenas se aditará que, tendo o subsí­dio de desemprego uma função sucedânea da remuneração salarial de que o trabalhador se viu privado e sendo a situação de desemprego, geradora do direito àquele subsídio, por natureza uma situação permanente e não instantânea, que se prolonga e renova no tempo, é de todo desrazoável fulminar com a perda definitiva e irreversível do direito ao subsídio de desem­prego, por todo o tempo (futuro) em que o trabalhador a ele teria direito (que se pode prolon­gar por anos), por qualquer atraso na formulação inicial do pedido. A situação de desemprego involuntário, em que se funda o direito ao subsídio de desemprego, persistia no momento em que o pedido da sua concessão foi formulado e ter‑se‑á prolongado para além dessa data. Negar este direito, embora limitado ao período temporal em que se pode considerar ter sido tempestivamente exercitado, signi­fica, em termos substanciais, uma negação, sem motivo adequado, do próprio direito dos tra­balhadores, constitucionalmente garantido, à assistência material em situação de desemprego involuntário".

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