domingo, março 11, 2007

Responsabilidade civil do Estado pelo exercício da função jurisdicional

Na versão online do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-03-2007, proferido no processo n.º 07B497, li o seguinte segmento do sumário: "A lei ordinária vigente não comporta a responsabilização do Estado por danos causados no exercício da função jurisdicional cível stricto sensu, e o artigo 22º da Constituição não é susceptível de a envolver, seja sob aplicação directa, seja por mediação do diploma mencionado sob 4 ou de normas estabelecidas pelo juiz ao abrigo do artigo 10º, nº 3, do Código Civil".

Em resumo, os factos apreciados são os seguintes: a autora foi mãe, em 1994, tendo a criança sido entregue para adopção plena, contra a vontade da progenitora e com base em relatórios da Segurança Social e pareceres do Ministério Público incorrectos ou falsos. Pretende a autora ser indemnizada pelo sofrimento causado pela alegadamente incorrecta decisão judicial de adopção.

No acórdão em apreço considerou-se que o dano moral é susceptível de indemnização, pois "estamos no caso vertente perante um quadro de sofrimento psíquico particularmente intenso, pelo que o dano envolvente, pela sua considerável gravidade, aferida em termos objectivos, merece, para efeito de compensação, a tutela do direito".

No entanto, considera que não ficou provada a culpa dos magistrados, já que "os factos não revelam que algum dos juízes dos tribunais da primeira instância ou da Relação tivesse consciência de que decidia ou votava a decisão contra o sentido dos factos provados ou das normas aplicáveis".

Quanto à possibilidade de responsabilização do Estado pela indemnização de danos causados no exercício da função jurisdicional, decidiu-se o seguinte.

"O artigo 22º da Constituição refere-se à responsabilização solidária do Estado e das demais entidades públicas com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por acções ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, naturalmente se, nos termos da lei ordinária, os últimos estiverem sujeitos ao dever de indemnizar.
De qualquer modo, considerando o seu elemento literal - responsabilidade solidária do Estado e das demais pessoas colectivas de direito público com os seus órgãos, funcionários ou agentes - não se pode concluir no sentido da abrangência dos danos causados no próprio exercício da função jurisdicional.
Com efeito, essa responsabilização do Estado, consta no nº 5 do artigo 27º do mesmo diploma, com o âmbito específico nele definido, ou seja, no quadro da jurisdição penal, dada a gravidade do dano a que se reporta, de qualquer modo nos termos constantes na lei ordinária, ou seja, no Código de Processo Penal.
Acresce que a lei ordinária ainda não densificou o conteúdo do artigo 22º da Constituição, ou seja, não regulou a efectivação do direito de indemnização nos seus aspectos adjectivos e substantivos, incluindo a caracterização do dano indemnizável e das suas causas ou pressupostos específicos.
Com efeito, não é à Constituição, mas sim à lei ordinária que incumbe a delimitação dos pressupostos substantivos e adjectivos da indemnização por danos causados no exercício da função jurisdicional.
Ademais, o Decreto-Lei nº 48 051, de 21 de Novembro de 1967, reporta-se à responsabilidade civil por actos lícitos e ilícitos no âmbito da função administrativa do Estado, e não à responsabilidade civil por actos lícitos ou ilícitos no âmbito da actividade jurisdicional.
Inexiste, por isso, fundamento legal para operar a aplicação do disposto no mencionado diploma para superar a falta de concretização por via da lei ordinária do referido normativo constitucional.
Com efeito, a função jurisdicional do Estado, enquanto titular da administração da justiça, ou seja, a de seleccionar, interpretar e aplicar as normas envolvidas pelos factos que são submetidos à apreciação dos tribunais, diverge da função administrativa propriamente dita.
E não se trata de uma lacuna jurídica, superável por via da aplicação do disposto no artigo 10º, nºs 1 e 3, do Código Civil, mas de lacuna de motivação político-legislativa, apenas susceptível de ser superada por via do legislador ordinário.
Na realidade, em sede de obrigação de indemnização do Estado por actos praticados no exercício da função jurisdicional, em concretização dos normativos constitucionais dos artigos 27º, nº 5 e 29º, nº 6, da Constituição, o que decorre da lei ordinária é apenas o que consta nos artigos 225º e 462º do Código de Processo Penal, que nada têm a ver com o caso vertente.
Por fim, importa salientar não resultar do nosso ordenamento jurídico qualquer norma que permita a interpretação de que a responsabilidade civil do Estado por erros cometidos no exercício da função jurisdicional apenas pode derivar da grave violação da lei por dolo ou negligência grosseira.
Em consequência, ainda que a recorrente tivesse provado os factos integrantes dos pressupostos gerais da obrigação de indemnização no quadro da responsabilidade civil, não poderia proceder a sua pretensão no confronto do recorrido".

A decisão suscita-me dois comentários breves.

Em primeiro lugar, discordo da interpretação dada ao artigo 22.º da Constituição, pois entendo que a norma abrange igualmente a responsabilidade do Estado pela indemnização de danos causados no exercício da função jurisdicional, em qualquer dos seus ramos ou vertentes, independentemente das regras do artigo 27.º - cfr., por exemplo, a anotação VIII. ao artigo 22.º da CRP, por Gomes Canotilho e Vital Moreira, CRP anotada, vol. 1.º, Coimbra: Coimbra Editora, 2007, pp. 430-431, e a anotação I. à mesma norma, por Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP anotada, tomo I, pp. 210-211.
Na jurisprudência do Supremo, é possível encontrar decisões opostas à agora anotada, no que a este ponto diz respeito - cfr. os acórdãos de 20-10-2005, proferido no processo n.º 05B2490, de 18-07-2006, proferido no processo n.º 06A1979, e de 31-03-2004, proferido no processo n.º 04A051.
No entanto, tal consideração não prejudica a decisão final, já que não ficou provada a culpa. O que me leva ao segundo comentário.
Este é já de iure constituendo. Estamos perante um caso exemplar para reflectir. Não me parece que deva onerar-se o autor com a prova da culpa, em situações como esta. A obrigação de indemnizar do Estado não tem que estar, aqui, indexada à culpa do juiz ou outra entidade colaborante com o tribunal (dificílima de provar, pois a culpa estará, num caso destes, diluída entre vários agentes, sem que possa ligar-se com segurança a uma pessoa concreta). Com a prova dos restantes pressupostos da responsabilidade civil torna-se suficientemente claro, em casos como o exposto, que o Estado, através dos seus órgãos, lesou gravemente um interesse sério.
Provados tais elementos, repugna-me muito menos aceitar a presunção de culpa, do que onerar o autor com uma prova quase impossível, que é praticamente equivalente à negação (indirecta) da indemnização (havendo que provar o "erro grosseiro, crasso, palmar, indiscutível e de tal modo grave que torne a decisão judicial claramente arbitrária" a que se refere o acórdão do STJ de 18-07-2006, proferido no processo n.º 06A1979). E sempre estaria aberta a porta para a prova, pelo Estado, da falta de culpa.
Tudo isto, de iure constituendo, para responsabilização directa do Estado, independentemente das regras de responsabilização pessoal do juiz.

Se o produtor, a pessoa que tem a direcção efectiva de um automóvel ou até quem passeia um cão pela rua tem, hoje, responsabilidade objectiva pelos danos causados a outrem, será tão descabido que se possa, indo até menos longe, presumir a culpa em hipóteses destas?

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