quarta-feira, janeiro 17, 2007

Responsabilidade civil e perda do direito à vida: um acórdão do STJ que merece a maior atenção

Recomenda-se a todos os que lidam diariamente com a responsabilidade civil nos tribunais, designadamente a que decorre de acidentes de viação, a leitura do acórdão do STJ de 11-01-2007, proferido no processo n.º 06B4433, atendendo particularmente às considerações que, naquela decisão, se tecem a respeito da indemnização do dano decorrente da perda do direito à vida. Não que a decisão saia do normal, mas porque contém um aviso de possível mudança futura. Eis a parte mais interessante do sumário.

"(...)
3 . A indemnização pela perda do direito à vida (em sentido estrito, não abrangendo a relativa ao sofrimento entre o facto danoso e a morte e a relativa ao sofrimento dos chegados à vítima) é desconhecida na Resolução n.º 7/75, de 14.3.1975, do Conselho da Europa, vem sendo ignorada em decisões do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem e, ou é ignorada ou é repudiada, nos principais países da União Europeia.
4 . O que determina, no nosso país, nova ponderação jurisprudencial sobre a sua concessão, atentas as perspectivas de harmonização indemnizatória no espaço da União.
5 . Actualmente, vista a uniformidade da nossa jurisprudência e atento o n.º3 do artigo 8.º do Código Civil, deve ser concedida.
(...)"

O interesse é, como se vê, mais do que suficiente para justificar a transcrição da parte da fundamentação correspondente ao citado segmento do sumário. Aqui fica o excerto, incluindo as notas no final. Pelo interesse do tema, certamente se desculpará a extensão de texto reproduzido.

"XV -
Alcançada a confirmação de que a seguradora deve ser responsabilizada pelo total da indemnização, importa agora percorrer as parcelas que põe em causa em ordem a confirmar ou não os respectivos montantes.

Impugna ela os valores que nos chegam quanto:
À perda do direito à vida;
Ao sofrimento da vítima entre o acidente e a morte;
Ao sofrimento da própria autora emergente da morte da filha.

XVI -
Quanto ao primeiro, chega-nos da Relação o valor em euros correspondente a dez milhões de escudos.

A partir do Acórdão deste Tribunal de 17.3.1971, proferido em revista alargada, mas com cinco votos de vencido (que se pode ver no BMJ 205, 150), a jurisprudência nacional tem sido unânime na atribuição da indemnização especificamente pela perda do direito à vida.
Na doutrina nacional, já não se pode falar em unanimidade, ainda que se deva aludir a esmagadora maioria no mesmo sentido. Contra pronunciaram-se Oliveira Ascensão (Direito das Sucessões, 4ª ed., 49 e seguintes) e Pamplona Corte-Real (Direito de Família e das Sucessões, II, 45 e seguintes).

Na verdade, a questão está, a nosso ver e ressalvada sempre a devida consideração, longe de não merecer, a nível jurisprudencial, uma muito maior atenção e subsequente discussão.

Acentuando-se sempre que apenas se discute a indemnização pela perda da vida e não a indemnização pelo dano afectivo dos chegados à vítima nem a reportada a eventual sofrimento desta entre o facto danoso e a morte.

XVII - (6)
A Resolução n.º75-7 do Conselho da Europa, de 14.3.1975, relativa à reparação dos prejuízos em caso de lesões corporais e de morte, cujo texto se pode ver em Armando Braga, A Reparação do Dano Corporal na Responsabilidade Civil Extracontratual, 296 e seguintes, omite, no seu número 3, todo dedicado à " Reparação em caso de morte ", qualquer referência sequer a perda do direito à vida. Alude à reparação dos danos patrimoniais e quanto à parte não patrimonial limita-se ao seguinte princípio:
"Os sistemas jurídicos que, actualmente, não admitem o direito à reparação por sofrimentos psíquicos de terceiros em consequência da morte da vítima, só devem proceder à sua reparação quando essas pessoas sejam a mãe, o, pai, o cônjuge ou os filhos da vítima; mesmo nestes casos, a reparação deve ter em consideração os laços afectivos existentes com a vítima antes do seu falecimento".
Esta Resolução não é - é evidente - vinculativa mas teve e tem enorme importância na fixação de indemnizações nos vários países europeus em cujos tribunais, com frequência, é citada e interpretada.

Por sua vez, o Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, nas decisões de 18.5.2000 de Velikova contra a Bulgária, de 10.4.2001 de Tanli contra a Turquia, de 4.5.2001 de Mckerr contra o Reino Unido da Grã-Bretanha e Irlanda do Norte e de 8.6.2002 de Öneryields contra a Turquia (7) - julgou violado o art. 2.º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem e fixou indemnizações com total ignorância de parcela por "perda do direito à vida ". As indemnizações - para além das relativas às despesas - reportam-se ao dano afectivo dos demandantes.
Isto, não obstante a redacção muito mais "categórica" daquele art.º 2.º do que do nosso art.º 496º do CC. " O direito de qualquer pessoa à vida é protegido por lei ", começa aquele preceito.
E numa resenha - necessariamente muito breve - do que se passa a nível interno dos principais países comunitários, vemos que tal parcela indemnizatória ou não chega sequer a ser discutida ou, quando o é, é repudiada (sem prejuízo, acentue-se sempre, da indemnização relativa aos danos afectivos dos chegados à vítima e da reportada ao eventual sofrimento da vítima entre o acto mortal e a ocorrência da morte ).
Em Espanha, o sistema ressarcitório assenta em grande medida na ley 30/95 de 8.11 que acolheu um " baremo " relativo às indemnizações emergentes de acidentes de viação com veículos a motor, mas que tem servido como referência também para indemnizações com outras causas.
A regra 4ª do "Anexo" respectivo define quem tem a condição de lesado em caso de morte e não inclui a vítima. Depois, na Tabela respectiva fixam-se os montantes a favor dos " prejudicados/ beneficiários", enumerando-os sucessivamente e excluindo de qualquer direito indemnizatório quem ali não estiver referido.
Temos, então, com evidência, que não há qualquer indemnização pela perda do direito à vida. (8)
Em Itália, temos o Acórdão da Cassazione (O Supremo Tribunal) Sez III Civile n.º887 de 25.01.2002 (9) "Não é ressarcível o dano biológico da morte imediata ou da lesão mortal seguida da morte imediata, não podendo o defunto transmitir aos herdeiros, pela perda da capacidade jurídica, o direito de crédito consequente à perda da vida".
Neste país, contudo, o repúdio desta parcela indemnizatória não é tão claro como nos outros. Aparece, pelo menos, a indemnização relativa a tal conceptualizada e discutida, como nos acórdãos de 2.4.2001, n.º4783 da Cassazione (III Sezione Civile) e de 12.6.96 do Tribunale di Cassino, Sezione Civile. (10)
Na Alemanha, tem-se, com frequência, atribuído indemnização aos herdeiros pelo sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte.
Com alguma dificuldade e discussão, também se vem atribuindo indemnização aos muito afectivamente ligados à vítima, mas só nos casos em que, em virtude da morte, entram em situações com tradução clínica (depressão, colapso nervoso, etc.).
A indemnização pela perda do direito à vida aparece raramente em discussão, às vezes com outras designações, e é frontalmente repudiada (11) .
Dos muitos acórdãos em que tal se manifesta, seleccionámos:
Do Bundesgerichtshof ( o Tribunal Supremo ) o de 12.5.98, em que se discute a indemnização a filhos por causa da morte dos pais e nem sequer se coloca a questão de qualquer quantia pela perda do direito à vida, tudo girando em torno do sofrimento destes antes de morrerem. (12).
Do Oberlandesgericht (correspondente " grosso modo" ao nosso Tribunal da Relação) de Karlsruhe NZV 1999, 210 em que se fixou indemnização (de 75 mil euros) pelo sofrimento de pessoa que veio a falecer 21 meses depois do facto danoso ( mas em consequência deste ) e o tribunal se recusou a ter em conta sequer, para aferição do montante indemnizatório, que "por causa do acidente a vida tenha sido encurtada". (13)
Do mesmo tribunal, de 25.1.2000, em que se recusou totalmente indemnização, no plano não patrimonial, em virtude do falecimento duma mulher que seguia num barco que embateu num poste de amarração : " As lesões conduziram imediatamente à morte. Esta surgiu sem aparecimento de qualquer dano imaterial. A vida acabou e não tem significado a perda da personalidade." (14)
Em França também se desconhece qualquer indemnização pela perda do direito à vida ( cfr-se os vários acórdãos referidos de pag.s 3 a 9 em "Indemnisation Du Dommage Corporel" de Jean Gaston Moore ).
Na sua página na Internet, Catherine Meimon Nisenbaum sintetiza doutamente o regime indemnizatório daquele país. (15)

E ignora qualquer indemnização por tal.
No seguimento da posição da jurisprudência francesa, o grupo de trabalho presidido por Madame Lambert-Faivre que apresentou ao Ministério da Justiça, em 22.7.2003, um relatório visando a sistematização e reforma do regime indemnizatório francês (16), também ignora qualquer parcela pela perda do direito à vida, ignorância, aliás, que já é patente no livro desta autora " Droit Du Dommage Corporel ", página 295 e seguintes.
Relativamente àquele país, podemos atentar ainda no Decreto n.º2001-3 de 3.1, referente à Indemnização das Vítimas de Actos de Terrorismo e de Outras Infracções Penais. Num diploma manifestamente protector das vítimas e dos titulares de direitos em casos de morte destas, descreve-se aquilo a que se deve reportar a garantia de indemnização em caso de decesso, ou seja, ao "préjudice moral et économique des ayant droit de la victime décédée", ignorando-se também qualquer parcela pela perda da vida em si. (17)
XVIII -
O isolamento de Portugal pesa, pois, muito como argumento a favor da discussão e até da solução contrária à que, entre nós, vem sendo adoptada.
Tanto mais que a harmonização indemnizatória, principalmente a nível de acidentes de viação, representa um objectivo que a União Europeia vem perseguindo.
O considerando quinto da Directiva do Conselho de 30.12.1983 (84/5/CEE) - Segunda Directiva Automóvel é do seguinte teor:
"Considerando que os montantes até à concorrência dos quais devem permitir, em toda e qualquer circunstância, que seja garantida às vítimas uma indemnização suficiente, seja qual for o Estado membro onde o sinistro ocorra":
E o considerando quarto da Terceira Directiva do Conselho (90/232/CEE, de 14 de Maio de 1990) refere o seguinte:
"Considerando que deve ser garantido que as vítimas de acidentes de veículos automóveis recebam tratamento idêntico, independentemente dos locais da Comunidade em que ocorram acidentes."
Estes considerandos ultrapassam a categoria lógica de fundamentos, passando a constituir também uma finalidade, como atesta a seguinte passagem do Acórdão do Tribunal de Justiça das Comunidades (Quinta Secção) de 14.9.2000, cujo texto integral se pode obter, por via informática, em http://www.dgsi.pt/celj. (doc. n.º 61998J0348 da Jurisprudência da UE ).
"Com efeito, como o Tribunal de Justiça já declarou no seu acórdão de 28 de Março de 1996... o preâmbulo das directivas em causa revela que estas têm como objectivo, por um lado...e, por outro, assegurar que as vítimas dos acidentes causados por esses veículos receberão tratamento idêntico, independentemente do local do território em que o acidente tenha ocorrido."
No sentido da sintonia indemnizatória com os demais países da União Europeia, vem, outrossim, este STJ tomando posição em vários arestos, afirmando, de modo concludente, no de 7.7.99 (CJ VII, III, 18) que:
"...o montante das indemnizações por via de acidentes de viação, praticado na União Europeia, de cujos prémios de seguros tendencialmente se vão aproximando os portugueses, poderá servir de critério para as fixar em Portugal..."

Outro argumento que fragiliza a nossa posição reside na contradição relativa ao "quantum" indemnizatório. O direito à vida é o bem supremo - afirma-se sem contestação - mas têm-se arbitrado indemnizações bem superiores às normalmente fixadas pela perda de tal direito, relativamente a danos em que o ofendido se mantém vivo. Seria, aliás, de todo por todo, inaceitável que os quantitativos arbitrados pela dita perda do direito à vida constituíssem tecto inultrapassável relativamente a outras indemnizações por danos pessoais particularmente graves (cfr-se, a este propósito, em www.dgsi.pt, o Ac. deste Tribunal de 8.3.2005 ).

E um terceiro ainda se pode encontrar na violência ética que representa esta indemnização.
Sob a capa da "justiça" que, numa análise superficial, representa a indemnização pela perda do direito à vida, está antes uma realidade consistente em alguém receber dinheiro para obtenção de prazeres porque outrem morreu. (18)
Decerto que a morte de alguém pode provocar e normalmente provoca sofrimento até muito intenso aos afectivamente ligados à vítima. E que, por isso, destes, os incluídos na enumeração legal e verificando-se os demais pressupostos da responsabilidade civil, devem ser indemnizados a fim de obterem prazeres que compensem a sua dor. A não indemnização até seria chocante. Mas estamos, então, perante outra parcela indemnizatória. Assim como relativamente ao sofrimento da vítima entre o facto danoso e a morte. Até ao último segundo de vida não havia a certeza da morte e aquela adquiriu um direito de indemnização que será transmitido, atentas as regras da sucessão, aos herdeiros. Representaria uma subversão de regras fundamentais do regime sucessório a não indemnização a receber por estes.
Mas o que estamos agora a discutir é apenas a indemnização derivada da própria morte e mal se concebe que um morra e o outro se divirta pelo facto concreto de outrem ter morrido.

De qualquer modo, não pode nem deve o juiz português ignorar o comando do n.º3 do art.º 8.º do Código Civil e ter bem presente a uniformidade da nossa orientação jurisprudencial. Ou, noutro modo de dizer o mesmo, ponderar a injustiça relativa que resultaria para os chegados à vítima, ao verem negada uma parcela indemnizatória que a totalidade dos tribunais vem fixando.

(6) Vamos seguir agora, de muito perto, a exposição feita no Ac. deste tribunal, com o mesmo relator, de 15.3.2006 que se pode consultar em www.dgsi.pt.
(7) Chega-se com alguma facilidade aos (extensos) textos integrais, em francês ou inglês. No sítio do respectivo tribunal, na referência dedicada às decisões judiciais, escreve-se o tema " indemnisation en cas de mort " ou o correspondente em inglês, surgindo vários arestos, entre os quais os citados.
(8) Veja-se, a este propósito, Jesús Entralgo, Sub Judice n.º17, pag.s 14 e 15 e, bem assim, Laura Serrano, La Indemnizatión Por Causa de Muerte, 62. Escreve esta autora, com referência as decisões das Salas Primeira e Segunda do Tribunal Supremo:
"Y es que si na finalidade que persigue toda indemnización es el ressarcimento del dano producido, en realidad en el caso de murte el dano que sufre el sujeto por la privación de su própria vida, nunca le podera ser indemnizado, por el echo de que el momento del nacimiento de tal derecho coincide com el de la extinción de la personalidad jurídica y por tanto com la incapacidad para assumir cualquier titularidad."
(9)Com recolha fácil na Internet : http://www.codiceonline.com/nonrisarcibile.htm
(10) Ambos com recolha fácil na Internet a partir dos sítios dos respectivos tribunais.
(11) Sobre a negação categórica dessa indemnização, pode ver-se o artigo da Vice-Presidente do Supremo Tribunal e Presidente do Senado deste com competência para os casos de indemnização emergente de acto ilícito, Gerda Müller, publicado em "Versicherungsrecht", Outubro de 2006, 1289 e seguintes (Caderno 28).
(12) Que se pode ver entrando em http://www.alpmann.schmidt.de, depois, Urteile, depois, a data e a referência VI ZR 182/97.
(13) Referido em Schmerzensgeldbeträge, de Hacks, Bohm e Ring, 22ª edição, pag. 12,
(14) Também Schmerzensgeldbeträge, pag. 46.
(15)Cfr-se http://www.meimon-nisenbaum.avocat.fr/indemnisations.htm
(16) Este relatório, de muito interesse, pode obter-se, com facilidade, também na Internet, inserindo no motor de busca " Rapport de Madame Lambert-Faivre".
(17) Pode-se consultar em http://www.jurisques.com/jfcivi.htm
(18) Temos aqui implícita a razão de ser para atribuição de indemnização por danos não patrimoniais comunemente invocada entre nós, a "compensatio doloris" (Cfr-se, exemplificativamente, Pessoa Jorge, ob. cit., 375 e Galvão Teles, ob. cit. 380)
."


Será extremamente interessante seguir, para o futuro, os novos ventos da jurisprudência. Como decorre da fundamentação da decisão, a questão mantém-se, para esta corrente, enquanto o Supremo não revir a sua posição. As consequências resultantes de uma possível inversão de sentido da jurisprudência uniformizada, nesta matéria (em termos de expectativas de indemnização, em sede de valor dos prémios de seguros, etc.) merecem a maior atenção dos práticos e teóricos do Direito. E, desde os famosos acórdãos de 1997 e 1999 sobre terceiros para efeitos de registo, todos sabemos que a jurisprudência uniforme pode "desuniformizar-se" com assombrosa rapidez, ainda que as fileiras dentro do STJ permaneçam divididas. Note-se que a decisão foi, aqui, unânime. O voto de vencido do acórdão não abrange a questão exposta.

Etiquetas: ,

0 Comentários:

Enviar um comentário

Subscrever Enviar feedback [Atom]


Página Inicial