terça-feira, maio 13, 2008

Regime Processual Experimental - DL n.º 108/2006 - Um problema de competência

Acompanhei com muito interesse a preparação legislativa do Regime Processual Experimental (RPE), até mesmo porque tive a oportunidade de participar numa parte desse labor. Continuo muito curioso quanto à sua aplicação e tento acompanhar as novidades.
Todavia, não fosse mão amiga ter-me dado notícia do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-04-2008, proferido no processo n.º 0820596, não me teria apercebido dele. Trata-se, se não me engano, da única decisão, até esta data, na base de dados DGSI, que se ocupa de um problema directamente emergente do regime aprovado pelo Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho.
É desse acórdão que trato hoje, exclusivamente.
Nele se levanta uma questão de competência que, salvo melhor opinião, penso não ter sido correctamente enquadrada e solucionada pela Relação. Vejamos o que a decisão nos traz.

1. O problema e a solução ditada pelo Tribunal da Relação do Porto
Nos juízos cíveis do Porto, foi intentada uma acção cível, com um valor que se desconhece, mas por certo inferior à alçada da Relação (€14.963,94, à data da propositura). Nessa acção, foi deduzida reconvenção. A soma do valor dos pedidos do autor e do reconvinte ascendeu a €19.989,18. Superada, assim, a alçada da Relação, o juiz dos juízos cíveis do Porto remeteu o processo às Varas Cíveis, apoiando-se, penso eu, nos artigos 97.º da LOFTJ e 98.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 do CPC.
Porém, as Varas Cíveis julgaram-se também incompetentes, com base nos seguintes argumentos (retirados do relatório do acórdão):
- a lei (o Dec. Lei nº 108/2006, de 8.6) não estabeleceu qualquer limite de valor para as acções declarativas cíveis instauradas ao abrigo do regime processual civil experimental, donde decorre que as mesmas podem ter valor superior à alçada da relação;
- do art. único da Portaria nº 955/2006, de 13.9 resulta que este regime processual experimental se aplica, designadamente, nos Juízos Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto (al. b) e nos Juízos de Pequena Instância Cível do Tribunal da Comarca do Porto (al. c);
- não está, assim, prevista a aplicação deste regime processual experimental nas Varas Cíveis do Tribunal da Comarca do Porto;
- o Dec. Lei nº 108/2006, ao contrário do que sucede, por ex., com o procedimento injuntivo, não prevê que, no decurso da acção declarativa cível instaurada nos termos do regime processual civil experimental, esta passe a seguir, a partir de determinado momento, a forma de processo comum ordinário;
- por isso, a acção cível instaurada nos termos do Dec. Lei nº 108/2006 nunca poderá observar, em nenhum momento da sua tramitação, a forma de processo comum ordinário;
- a competência originária para conhecer deste tipo de acções pertence assim aos Juízos Cíveis da comarca do Porto e não às suas Varas Cíveis;
- só no caso das partes terem requerido a intervenção do tribunal colectivo é que os Juízos Cíveis remeterão o processo às Varas Cíveis para julgamento e posterior devolução, de acordo com o art. 97 nº 4 da LOFTJ, situação que não se verificou no presente caso.
Foi assim que o problema chegou às mãos da Relação do Porto, para resolução do conflito negativo de competência.
No acórdão em análise, decidiu-se que competentes seriam os Juízos Cíveis do Porto.
Considerou-se, em suma (e com adaptação minha):
- o Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, não fixa qualquer limite de valor para a sua aplicação;
- o mesmo diploma prevê a possibilidade de requerer a intervenção do colectivo, pelo que daí se depreenderá que se aplica a acções superiores à alçada da Relação;
- a Portaria que determina quais os tribunais onde se aplica o RPE não refere as Varas Cíveis do Porto;
- o diploma que aprova o RPE não prevê que, no decurso da tramitação das acções declarativas cíveis instauradas no seu âmbito, estas passem a seguir, a partir de determinado momento ou verificado certo condicionalismo, a forma de processo comum ordinário;
- o processo seria da competência dos Juízos Cíveis e apenas seria remetido às Varas Cíveis se, tendo sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, o julgamento houvesse que fazer-se por esse (cfr. artigo 97.º, n.º 4 da LOFTJ).


2. Crítica da solução a que chegou o acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 08-04-2008, proferido no processo n.º 0820596
Com o devido respeito, que é muito, não creio que este acórdão tenha chegado à melhor solução do problema. Eis, numa apertada síntese, as razões da discordância (referir-me-ei ao artigo 308.º, n.º 2 do CPC, na redacção anterior ao DL n.º 34/2008, por ser a aplicável, tendo passado, por força deste diploma, a regra em causa para o n.º 3 do mesmo artigo).

2.1. Natureza do Regime Processual Experimental
O RPE é um regime processual que visa ensaiar algumas soluções na área do processo civil.
Precisamente porque a lógica do preceito foi de experimentação de tais soluções, pode ler-se, no preâmbulo:
"Opta-se, num primeiro momento, por circunscrever a aplicação deste regime a um conjunto de tribunais a determinar pela elevada movimentação processual que apresentem, atentos os objectos de acção predominantes e as actividades económicas dos litigantes. A natureza experimental da reformulação da tramitação processual civil que aqui se prevê permitirá testar e aperfeiçoar os dispositivos de aceleração, simplificação e flexibilização processuais consagrados, antes de alargar o âmbito da sua aplicação".
A intenção do legislador é clara: aos processos que corram nos tribunais "x" (a determinar por Portaria), a forma processual
residual (que, nesses tribunais, será a comum) não se encontrará directamente nas normas da acção comum previstas no CPC, mas sim no diploma que aprova o RPE.
Não se retira de nenhum ponto da lei, nem do seu preâmbulo, nem dos trabalhos preparatórios que fosse intenção do legislador alterar o regime da competência dos tribunais
. O objecto do diploma está a jusante da competência e tem só - apenas e exclusivamente, passe a tautologia - a ver com a tramitação das acções. A competência dos tribunais, essa, continua a regular-se pelas mesmas normas pelas quais se regulava anteriormente. O RPE não as alterou, nem tem um objecto coincidente com o seu.


2.2. Sentido da Portaria n.º 955/2006, de 13 de Setembro e seu efeito na competência dos tribunais
O entendimento segundo o qual o RPE não interfere com a competência dos tribunais sai reforçado pela análise da Portaria que, em execução do programa traçado pelo Decreto Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, definiu quais os tribunais em que seria aplicado o RPE.
No preâmbulo da dita Portaria, pode ler-se:
"(...) atendeu-se igualmente às diferentes amplitudes de competência dos tribunais, aferidas em função da sua competência cível específica e da existência de tribunais de competência especializada na circunscrição em causa. Obteve-se, deste modo, um conjunto de tribunais que — apresentando como denominador comum a competência para processos de natureza exclusivamente cível, salvo os da competência dos tribunais de família e menores, dos tribunais de comércio e dos tribunais marítimos— também espelha diferentes realidades da jurisdição cível, considerados o tipo e o objecto das acções de que conhecem."
Ou seja, não só a Portaria não visou alterar a competência dos tribunais em que viria a aplicar-se como, precisamente porque foram escolhidos com base em certas características da sua pendência, fará todo o sentido que mantenham o círculo de competência que antes tinham. Cada um dos tribunais onde se aplica o RPE continuará a receber os mesmos tipos de acções que anteriormente à aplicação do RPE receberia. Por outro lado, continuará a não ter competência para a tramitação das acções que, anteriormente, não poderia assegurar.
Subsistiria, aliás, sempre um problema inultrapassável: não poderia uma Portaria revogar as normas de competência dos tribunais, aprovadas por Lei.


2.3. Normas aplicáveis na resolução do problema
As considerações precedentes não resolvem, todavia, por completo, o problema. Poder-se-ia considerar - e, em certo momento da sua argumentação, a Relação do Porto parece não andar longe deste entendimento - que, tendo a acção sido correctamente intentada nos Juízos Cíveis do Porto, como efectivamente foi, seria a falta de normas específicas a ditar a possibilidade de remeter o processo para outro tribunal (como as dos artigos 98.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 do CPC, conjugados com o artigo 97.º, n.º 3 da LOFTJ, ou a do artigo 7.º n.º 2 do Decreto-Lei n.º 269/98, de 1 de Setembro, esta última invocada no acórdão) que impediria a remessa dos autos às Varas Cíveis. Assim, de certo modo, seria do próprio RPE a conter a competência nos Juízos Cíveis, mesmo apesar da reconvenção.
Este entendimento, porém, não resiste a duas considerações. A primeira, que já se analisou, prende-se com a circunstância de o RPE não visar alterar regras de competência. Sobre este ponto, não é necessário tecer mais comentários.
A segunda consideração relevante é a de que, apesar de o RPE se apresentar como a forma
residual nos tribunais em que aplique, ele não afasta em absoluto a aplicação de normas do CPC. Isto não o transforma num processo especial, note-se (e aqui residirá, talvez, a fonte de alguns enganos), pois nunca se poderá denominar especial uma forma de processo que, num certo tribunal, se aplique na falta de outra(s). O RPE ocupa, na verdade, o lugar de processo comum, nos Juízos Cíveis do Porto. Mas entra pelos olhos dentro que, nos seus escassos 22 artigos não está - não pode estar! - toda a regulação necessária à tramitação da acção. Esta insuficiência só poderá colmatar-se por recurso às normas do CPC, mas não enquanto processo comum, aplicável subsidiariamente a um processo especial. Ele aplica-se enquanto legislação processual que o RPE não pretendeu afastar completamente, mas apenas nos pontos por si particularmente regulados. Se assim não fosse, não sentiria o legislador necessidade de, no próprio RPE, afastar a aplicabilidade de certas normas do CPC (veja-se, por exemplo, o artigo 6.º, n.º 4 do RPE).
Reconheça-se o inusitado regime dual, nos Juízos Cíveis do Porto: o CPC não fornece o processo comum para este tribunal, mas continua a aplicar-se, enquanto legislação subsidiária, na medida em que não seja afastado pelo RPE. Entendimento contrário levar-nos-ia a considerar, com pouca razoabilidade, que não haveria, nos Juízos Cíveis do Porto, por não constarem do RPE, normas que regulassem a contagem de prazos, que disciplinassem o momento e a forma dos actos do juiz e da secretaria, que estabelecessem os pressupostos processuais, que determinassem em que termos se podem formular pedidos cumulativos, que previssem a possibilidade de escusa das testemunhas, etc.
Assim sendo, se o RPE se sobrepõe ao CPC, enquanto processo comum, nos Juízos Cíveis do Porto, na medida em que as regras daquele diferem das disposições deste, mas continua a ser do mesmo CPC que se retiram as regras de processo que o RPE
optou por não regular diferentemente nem afastar, directa ou indirectamente, então parece não haver razões para deixar de aplicar normas que, constando da parte geral do CPC, são aplicáveis a quaisquer processos cíveis.
As normas dos artigos 98.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 do CPC não são afastadas pelo RPE. Assim, mantém-se, ao abrigo deste, a sua aplicabilidade, que não contraria o novo regime. E o que resulta das referidas normas é isto: quando, por força da reconvenção, o valor da acção ultrapasse aquele que, inicialmente, cabia na competência do tribunal, haverá que determinar qual o tribunal competente em função do novo valor. O processo seguirá, então, no tribunal agora competente.
E seguindo que forma de processo? Seguirá a forma que for aplicável nesse outro tribunal (no caso, o processo ordinário previsto no CPC, aplicável nas Varas Cíveis).
O que há que perguntar é apenas isto: se esta acção, com o novo valor, houvesse que ser intentada num outro tribunal, qual seria o competente? E a resposta, no caso concreto, conduzirá à competência das Varas Cíveis. A transição para as Varas resulta líquida do n.º 3 do artigo 97.º da LOFTJ.
São os artigos 98.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 do CPC que conduzem à aplicabilidade do n.º 3 do artigo 97.º da LOFTJ.
Neste ponto, a Relação inverteu, a meu ver, a lógica dos preceitos: afirmou que, por o RPE não prever a remessa do processo para outro tribunal, ela não poderia ocorrer. Pelo contrário: porque o RPE não afasta a possibilidade da remessa (e, como vimos, não pode retirar-se tal propósito da vontade manifestada pelo legislador), esta deve continuar a operar como anteriormente.
Esta é a única solução que se harmoniza com: (i) a natureza do RPE enquanto regime que não pretende interferir com a competência dos tribunais; (ii) a formulação do juízo sobre a aplicabilidade do RPE enquanto momento posterior à resolução da questão da competência; (iii) a aplicabilidade das regras gerais do CPC, desde que não sejam incompatíveis com o novo regime (comum), como único meio de garantir consistência e coerência ao RPE; (iv) a subsistência das normas da LOFTJ, designadamente o artigo 97.º, que não foi revogado ou excepcionado pelo RPE, muito menos pela Portaria que o regulamenta.

No regime anterior, tudo parecia mais fácil porque o tribunal inicialmente competente e aquele que passava a ser competente a partir da reconvenção se regiam pelo mesmo corpo de normas, o CPC. No regime actual, se inicialmente se aplicar o RPE, a única diferença é que o primeiro tribunal segue, na tramitação do processo, regras diferentes, mas toda a estrutura legal em que assentam a competência dos tribunais, o momento em que ela fixa e as possibilidades da sua alteração se mantém rigorosamente alterada. Daí que a solução seja a mesma do regime anterior.
Ao sair dos Juízos Cíveis do Porto para as Varas Cíveis, o processo passará, pura e simplesmente, a governar-se pelas regras da acção ordinária, como antes abandonava a forma sumária. Nada mudou a este respeito, nem uma linha do RPE aponta para que algo tenha mudado.


2.4. Percurso argumentativo do acórdão e conclusão Em jeito de conclusão, acompanharei, ponto por ponto, a argumentação da Relação, respondendo a cada momento:

a) O Decreto-Lei n.º 108/2006, de 8 de Junho, não fixa qualquer limite de valor para a sua aplicação.
Tal como se encontra formulada, esta conclusão está correcta. Aliás, nos Juízos de Competência Especializada Cível de Almada ou do Seixal, o RPE aplicar-se-á a acções cíveis de valor superior à alçada da Relação. Mas assim será porque, naquelas comarcas, o artigo 94.º da LOFTJ assim o permite. Na comarca do Porto, não será assim porque, no confronto com o artigo 97.º da LOFTJ, a competência dos Juízos Cíveis cederá, pois é residual (artigo 99.º da LOFTJ).

b) O mesmo diploma prevê a possibilidade de requerer a intervenção do colectivo, pelo que daí se depreenderá que se aplica a acções superiores à alçada da Relação.
Também esta conclusão está correcta (ver nota à anterior).

c) A Portaria que determina quais os tribunais onde se aplica o RPE não refere as Varas Cíveis do Porto.
Conclusão correcta, pois nas Varas Cíveis não será aplicável o RPE, o que não impede, porém, que os processos transitem dos Juízos Cíveis para as Varas Cíveis.

d) O diploma que aprova o RPE não prevê que, no decurso da tramitação das acções declarativas cíveis instauradas no seu âmbito, estas passem a seguir, a partir de determinado momento ou verificado certo condicionalismo, a forma de processo comum ordinário.
É certo que o RPE não o prevê, mas prevêem-no os artigos 98.º, n.º 2 do CPC, conjugado com o artigo 308.º, n.º 2 do mesmo diploma, que não são afastados pelo RPE e abrem a porta à aplicação do artigo 462.º do CPC, nas Varas Cíveis.

e) O processo seria da competência dos Juízos Cíveis e apenas seria remetido às Varas Cíveis se, tendo sido requerida a intervenção do tribunal colectivo, o julgamento houvesse que fazer-se por esse (cfr. artigo 97.º, n.º 4 da LOFTJ).
O n.º 4 do artigo 97.º da LOFTJ só seria aplicável se a aplicação conjunta dos artigos 98.º, n.º 2 e 308.º, n.º 2 do CPC não fizesse operar o n.º 3 daquele artigo 97.º, cuja aplicabilidade afasta, como é evidente, a do n.º 4.


Estas são, em resumo, as razões pelas quais concluiria em sentido oposto ao decidido pela Relação.

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2 Comentários:

Anonymous Anónimo disse...

Parece-me que o entendimento que defende neste artigo é incontornável.
É uma questão que deve merecer a atenção dos responsáveis pela monitorização do regime. Por isso, abusivamente, bem sei, noticiei o contributo à Direcção-Geral da Política de Justiça.
PRF

5/13/2008 12:09 da tarde  
Anonymous Anónimo disse...

Concordo plenamente.
Rebate de forma inabalável todos os argumentos esgrimidos no acórdão, que espero não passe de uma andorinha isolada.
Espero tanbém que o regime de monitorização tome em atenção esta questão.

5/13/2008 2:34 da tarde  

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