quinta-feira, maio 31, 2007

Acórdão Uniformizador do Supremo Tribunal de Justiça - competência dos julgados de paz

Finalmente foi proferido um acórdão uniformizador quanto à matéria da competência dos julgados de paz. Independentemente da posição que se subscreva, parece de saudar, pelo menos, a previsível pacificação numa matéria cuja incerteza se havia tornado em sério invonveniente, principalmente para os advogados e seus clientes.

O acórdão do Supremo Tribunal de Justiça
de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B881, pronunciou-se no sentido seguinte:

"No actual quadro jurídico, a competência material dos julgados de paz para apreciar e decidir as acções previstas no artº 9º, nº 1, da Lei nº 78/2001, de 13 de Julho, é alternativa relativamente aos tribunais judiciais de competência territorial concorrente".

A divergência jurisprudencial a este respeito vinha sendo acompanhada, aqui no blog, há já algum tempo. Recordo aqui o alinhamento das decisões até este acórdão uniformizador:

Pela exclusividade da competência dos julgados de paz, nas matérias que lhe são confiadas, e consequente incompetência dos tribunais judiciais alinham os acórdãos
do Supremo Tribunal de Justiça de 04-03-2004, proferido no processo n.º 03B3646 (neste acórdão, não se trata da questão principal, mas é tratada na parte final da fundamentação), de 05-07-2005, in CJ, 2005, II, pág. 154, de 03-10-2006, proferido no processo de agravo n.º 2396/06 (não publicado na íntegra, mas com sumário aqui), do Tribunal da Relação do Porto de 27-06-2006, proferido no processo n.º 0623377 (por unanimidade), de 08-11-2005, proferido no processo n.º 0525540 (por unanimidade) e de de 05-12-2006, proferido no processo n.º 0626174 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 26-10-2006, proferido no processo n.º 8573/2006-8 (com um voto de vencido), de 29-06-2006, proferido no processo n.º 5726-2006-6 (com um voto de vencido que, porém, não abrange a referida questão), de 22-06-2006, proferido no processo n.º 4929/2006-6 (por unanimidade) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8989/2006-2 (por unanimidade) e de 18-01-2007, proferido no processo n.º 1047/2006-2 (por unanimidade).

Contra a exclusividade, defendendo a competência alternativa entre tribunais judiciais e julgados de paz nas matérias confiadas a estes, podem ler-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
de 23-01-2007, proferido no processo n.º 06A4032 (por unanimidade), do Tribunal da Relação de Lisboa de 12-07-2006, proferido no processo n.º 3554/2006-7 (por unanimidade), seguindo e citando o acórdão do mesmo tribunal de 18-05-2006, proferido no processo n.º 3896/2006-8 (por unanimidade) e ainda, da mesma Relação, os de 14-11-2006, proferido no processo n.º 8588/2006-7 (com um voto de vencido) e de 14-12-2006, proferido no processo n.º 8759/2006-8 (por unanimidade). Defendendo a concorrência de competência, transitoriamente, pode ler-se o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 14-09-2006, proferido no processo n.º 4664/2006-8.

Na decisão intervieram 33 conselheiros, dos quais apenas 3 discordaram do seu sentido. Será conveniente apreciar a fundamentação do acórdão e o conteúdo dos votos de vencido. É o que se fará de seguida. Apesar de se tratar de um texto longo, a sua transcrição (não integral, mas substancial) permitirá realçar as passagens que julguei mais relavantes da fundamentação e da posição vencida.

O acórdão uniformizador começa por descrever o regime vigente de organização judiciária e a posição que nele ocupam os julgados de paz.
De seguida, entra na questão central, assumindo que
"o quadro legal próximo, designadamente a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e a Lei dos Julgados de Paz, não contém norma expressa que nos permita a resolução da questão que tem sido veiculada pela expressão competência alternativa ou exclusiva dos julgados de paz".

Partindo do elemento literal, avança o acórdão, antes mesmo de o analisar, com o "contributo histórico da frustrada experiência legislativa anterior à Lei dos Julgados de Paz, dos trabalhos preparatórios desta última Lei nem da omissão do legislador, na alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais bastante posterior ao desencadear da controvérsia, de operar qualquer clarificação", tendo "por anómala a solução legal de as decisões dos julgados de paz serem sindicadas em via de recurso por tribunais da primeira instância da ordem judicial, apesar de se não integram nessa ordem, ou seja, na hierarquia dos tribunais que a envolve".


Explorando o contexto histórico-legislativo, descreve-se:
"Inicialmente, no quadro dos projectos de lei apresentados na Assembleia da Republica pelo Grupo Parlamentar do Partido Comunista Português, a ideia era a de atribuir aos julgados de paz uma específica parcela material de competência jurisdicional, concomitantemente retirada aos tribunais da ordem judicial por via da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Com efeito, resulta dos trabalhos preparatórios que a delimitação da competência material dos julgados de paz dependia da alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais no sentido da perda da correspondente competência pelos tribunais de primeira instância, incluindo os juízos de competência específica.
Todavia, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais não foi objecto da projectada alteração, a lei não estabeleceu a competência material dos julgados de paz por via da redução da competência material dos tribunais e judiciais e ficou colocado conflito de leis de competência material jurisdicional em análise a que acima já se fez referência.
Mas a opção pela não alteração da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais implicou, necessariamente, que o objectivo de atribuir competência exclusiva aos julgados de paz para conhecer das matérias a que se reportava o artigo 5.° do mencionado projecto de lei tivesse ficado absolutamente comprometido, para o bem ou para o mal.
E na feitura da Lei dos Julgados de Paz não se atentou na referida circunstância, certo que se avançou para a sua publicação sem ponderar que, por via dela se ia potenciar o referido conflito.
E agora, conjugando o que se prescreve na Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e na Lei de Organização e Funcionamento dos Julgados de Paz, exactamente porque a primeira não foi alterada de modo a conformar-se com a última, o que se configura, prima facie é a competência material concorrencial dos órgãos judiciais da jurisdição cível e dos julgados de paz".


Acrescenta-se, pouco depois:
"os julgados de paz são tribunais constitucionalmente previstos como sendo de existência eventual não integrados em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição, incluindo a dos tribunais judiciais, ou seja, não se inserem na categoria propriamente dita dos tribunais de primeira instância.
Por isso, a lei traça-lhe a vocação para a participação cívica dos interessados e de estímulo à justa composição dos litígios em quadro de acordo, de harmonia com a ideia que envolveu a sua criação de constituírem uma via alternativa de resolução de conflitos, com activa intervenção de mediadores, em termos de propiciarem o descongestionamento dos tribunais da ordem judicial.
Mas nem da lei, nem na ideia que presidiu à sua criação, ou seja, a de propiciarem o referido descongestionamento, se pode extrair algum argumento relevante no sentido da sua competência material inicial exclusiva para as acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, certo que a sua mera competência material inicial alternativa para o efeito também é susceptível, porventura em menor grau, de propiciar a consecução do mesmo desiderato.
Resulta do ordenamento jurídico de referência que os julgados de paz foram instituídos sob a ideia de um projecto experimental, com escassa implantação territorial, susceptibilidade de abrangência de uma pluralidade de municípios, com sede em um deles, sem competência executiva e possibilidade de os processos, mesmo antes da fase do recurso, transitarem deles para continuarem a sua tramitação nos tribunais da ordem judicial.
Este resultado de transmutação, processual expresso na Lei dos Julgados de Paz, a que acima se fez referência, tendo em conta que o intérprete deve presumir que o legislador consagrou as soluções mais acertadas, só permite a inferência de que a lei não exclui a concorrência de competência material, quanto às mencionadas acções, entre os julgados de paz e os tribunais judiciais ou os órgãos jurisdicionais nestes integrados.
Seria incompreensível que a lei estabelecesse que as pessoas sem interesse na mediação tivessem de intentar alguma das acções a que se refere o extenso elenco do artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz em julgados de paz sedeados em pontos do território consideravelmente distantes dos tribunais da respectiva comarca, no quadro de um processo com menores garantias de defesa, sem possibilidade de neles discutir a matéria relativa aos incidentes nem de produzir a prova pericial, esta não raro indispensável no âmbito das acções cujo objecto seja a averiguação da responsabilidade civil extracontratual.
E ocorreria uma situação de desigualdade no acesso à justiça a favor das pessoas sem condições objectivas de serem utentes dos julgados de paz e contra aquelas com essas condições.
Ademais, resultaria incongruente que os tribunais da ordem judicial tivessem competência para conhecer das mencionadas acções a partir de determinada vicissitude processual meramente eventual e não a tivessem para conhecer delas inicialmente.
Acresce, neste quadro de incongruência, para o caso de as pessoas serem forçadas a accionar nos julgados de paz por virtude da lei de competência material que nesse sentido estabelecesse, elas facilmente frustrariam essa imperatividade por mero efeito da sua vontade de implementar algum incidente, de requerer a produção de prova pericial ou de deduzir algum pedido reconvencional"
.

A interpretação dos principais preceitos que regulam esta matéria foi, essencialmente, a seguinte:
"Os artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil, que expressam serem da competência dos tribunais judiciais as causas que não sejam atribuídas a outra ordem jurisdicional, não permitem a conclusão de que a competência dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz não concorre com as dos tribunais da ordem judicial.
Com efeito, os referidos normativos são bastante anteriores à criação dos actuais julgados de paz, pelo que, como é natural, não podiam ser pensados em função da delimitação da competência material quanto às referidas acções entre eles e os tribunais da ordem judicial.
A interpretação actualista dos referidos artigos, face à existência actual de julgados de paz, também não pode implicar a sua aplicação na situação vertente, visto que eles não se integram em qualquer das ordens de tribunais previstas no artigo 209º, nº 1, da Constituição – constitucional, judicial, administrativa ou de contas.
Acresce que a estatuição dos artigos 18º, nº 1, da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais e 66º do Código de Processo Civil pressupõe, como é natural, a inexistência de normas atributivas da competência aos tribunais da ordem judicial, o que não acontece no caso espécie, conforme acima já se fez detalhada referência.
Com efeito, conforme acima se referiu, a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais atribui competência em razão da matéria aos tribunais ou órgãos jurisdicionais da ordem judicial para conhecerem de qualquer das acções a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz.
À interpretação da lei com o referido sentido não obsta o disposto no artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz, que tem servido para alicerçar a referida solução de competência material exclusiva dos julgados de paz para conhecer das acções a que se reporta o artigo 9º daquela Lei.
Conforme acima se deixou transcrito, o artigo 67º da Lei dos Julgados de Paz expressa que as acções pendentes à data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas.
A estrutura literal e finalística deste normativo não permite, como é natural, que dele se extraia, por via implícita, uma norma sobre a competência material exclusiva dos julgados de paz, além do mais porque para o efeito só pode servir disposição expressa da lei.
A poder atribuir-se a este normativo algum sentido útil, só poderia ser o de que as partes nas aludidas acções, pendentes nos tribunais da ordem judicial aquando da instalação dos julgados de paz, não podiam optar pela sua transmutação para os julgados de paz, ou seja, o de que, proposta alguma das referidas acções no tribunal judicial, não era possível a opção das partes pela sua continuação nos julgados de paz.
Todavia, o conteúdo deste artigo não pode ser compreendido se não se tiver em conta idêntico texto que constava do projecto de lei tendente à redução da competência em razão da matéria e do valor dos tribunais da ordem judicial e à atribuição correspondente aos julgados de paz.
É claro que o referido normativo só faria sentido no contexto da Lei dos Julgados de Paz se o mencionado projecto de lei, nessa parte, tivesse sido convertido em lei, mas não o foi, certo que se deixou inalterada a Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais, alteração que constituía um dos seus pressupostos necessários.
Assim, como não foi aprovado o referido projecto de lei, estruturado em paralela conexão lógica com o concernente à organização e funcionamento dos tribunais judiciais, não perderam os tribunais competência em razão da matéria para conhecer das causas a que se reporta o artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, nem os julgados de paz, tal como foram instituídos, a adquiriram"
.

A síntese, que consta do acórdão, é esta:
"Os julgados de paz actuais só na sua vertente de mediação se assemelham aos julgados de paz de pretérito.
A evolução dos trabalhos preparatórios da Lei dos Julgados de Paz revela a intenção de instituir um meio alternativo à via judicial para a resolução dos pequenos diferendos da vida quotidiana, com procedimentos simplificados e informais, em quadro de justiça de proximidade, economicamente acessível e de disponibilização de instrumentos de mediação.
Os julgados de paz não são tribunais judiciais, posicionando-se fora do patamar da organização judiciária portuguesa tal como ela resulta da Constituição e da Lei de Organização e Funcionamento dos Tribunais Judiciais.
Entre os julgados de paz e os tribunais da ordem judicial da primeira instância não há qualquer relação de limitação de competência, porque o nexo é de paralelismo e de concorrência.
Os julgados de paz são órgãos jurisdicionais de resolução alternativa de litígios e, consequentemente, não sucederam na competência dos tribunais da ordem judicial, nem são seus substitutos, integrando-se na categoria de tribunais de resolução de conflitos de existência facultativa.
As pessoas, podem accionar, quanto às acções previstas no artigo 9º da Lei dos Julgados de Paz, salvo as pessoas colectivas relativamente a exigência de prestações pecuniárias, nos julgados de paz ou nos tribunais da primeira instância da ordem judicial, designadamente nos de competência genérica, nos juízos de competência especializada cível, nos juízos cíveis ou nos juízos de pequena instância cível, conforme os casos.
O accionamento numa das referidas ordens de tribunais exclui a possibilidade de accionamento na outra, sem prejuízo da transmutação das acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial"
.

A decisão contou com votos de vencido dos conselheiros Duarte Soares, Salreta Pereira e Maria dos Prazeres Beleza, embora apenas esta última o tenha fundamentado expressamente. Fê-lo através dos argumentos seguintes:
"1. Não creio que seja possível encontrar na Lei nº 78/2001, de 13 de Julho (Organização, Competência e Funcionamento dos Julgados de Paz) qualquer sinal de que o legislador pretendeu criar tribunais cuja jurisdição esteja dependente de vontade dos interessados (seja só do autor da acção, seja de ambas as partes); o que é o mesmo que dizer, neste contexto, que não vejo, nem no seu texto, nem na sua história, nem na sua razão de ser, qualquer indicação de que a competência material que lhes foi atribuída seja concorrente com a dos tribunais judiciais:
Não resulta do texto. Contrariamente ao que se passava com o Decreto-Lei nº 539/79, de 31 de Dezembro, nenhum preceito exige tal vontade (o artigo 16º, nº 2 deste Decreto-Lei definia como condição de intervenção dos julgados de paz então criados que “as partes estejam de acordo em fazê-las seguir nos julgado de paz”); é sintomático que a Lei nº 78/2001 apenas tenha exigido acordo das partes para o recurso à mediação (cfr. artigos 35º, nº 1, 49º, nº 1 e 51º, nº 1 da Lei nº 78/2001).
É incompatível com o artigo 67º, que dispõe que “as acções pendentes á data da criação e instalação dos julgados de paz seguem os seus termos nos tribunais onde foram propostas”. Este preceito apenas aplica aos julgados de paz a regra geral relativamente à aplicação no tempo das leis sobre competência, constante do artigo 22º da Lei nº 3/99, de 13 de Janeiro (Lei de Organização e de Funcionamento dos Tribunais Judiciais), segundo a qual a competência se afere pela lei em vigor à data da propositura da acção.
Não resulta do seu silêncio. Não é prática, nas sucessivas leis que têm alterado a organização judiciária, nomeadamente criando tribunais novos, esclarecer que a competência destes novos tribunais exclui a daqueles que, não fora tal lei, continuariam a ser competentes para as causas que passam a ser-lhes atribuídas. O que sucede, como se sabe, é que a competência dos tribunais de competência residual varia em função da especialização existente em cada momento. E isto é verdade, quer dentro dos tribunais judiciais, quer no relacionamento entre ordens de tribunais, dada a competência residual daqueles; pense-se, por exemplo, numa lei que venha alargar a competência global dos tribunais administrativos.
Não tem aqui, pois, relevância a circunstância de os julgados de paz se não integrarem na ordem dos tribunais judiciais.
– Não resulta da história legislativa. Contrariamente ao que se afirma no acórdão, não se pode retirar da não inclusão de uma norma que esclareça que a competência é exclusiva, bem como da não aprovação de qualquer alteração à Lei Orgânica dos Tribunais Judiciais, como esteve proposto, nenhum significado; a lógica do sistema encarrega-se de harmonizar as competências.
– Não resulta da razão de ser da criação dos julgados de paz, que foi a de descongestionamento dos tribunais judiciais.
– Finalmente, também não é imposta pela Constituição, que se limita a prever a possibilidade de a lei ordinária criar julgados de paz, não fornecendo qualquer indicação relevante para a questão agora em causa.
2. O acórdão parte expressamente da premissa de que a exclusividade “não é corolário necessário das normas sobre competência dos tribunais”, premissa que retira da “transmutação de acções dos julgados de paz para os tribunais da ordem judicial”, prevista nos artigos 41º e 59º, nº 3 da Lei nº 78/2001.
Segundo estes preceitos, os processos devem ser remetidos para o tribunal judicial competente quando for suscitado, por qualquer das partes, um incidente, ou quando for requerida prova pericial.
Em meu entender, este regime não permite de forma alguma concluir pela concorrência de competências. Não é inédito que um tribunal inicialmente (exclusivamente) competente quando a acção foi proposta deixe de o ser por vicissitudes do próprio processo, que determinam que passe outro tribunal a ser (exclusivamente) competente para o julgar. Assim tem sucedido entre nós, por exemplo, quando o tribunal perde a competência por se ter alterado o valor da causa (nomeadamente, porque houve reconvenção), ou quando o processo corria num tribunal e tinha de passar para outro por ser requerida a intervenção do colectivo.
Não me parece argumento a eventualidade de uma parte poder suscitar um incidente apenas para provocar a alteração do tribunal; a possibilidade de utilização indevida de uma lei não é argumento para a interpretar.
3. O acórdão considera ainda incongruente com a exclusividade da competência o afastamento, em certos casos, da competência dos julgados de paz quando é parte uma pessoa colectiva.
Em primeiro lugar, cumpre esclarecer que essa exclusão apenas existe para a hipótese prevista da al. a) do nº 1 do artigo 9º, ou seja, para a apreciação de “acções destinadas a efectivar o cumprimento de obrigações” cujo objecto seja uma “prestação pecuniária e de que seja ou tenha sido credor originário uma pessoa colectiva”,
podendo as pessoas colectivas ser partes em todos os outros casos de competência dos julgados de paz.
Em segundo lugar, sabe-se qual foi a razão de ser desta exclusão: deixar fora dos novos tribunais certas acções de cobrança que, pelo seu número, os tornariam com grande probabilidade, rapidamente, ineficazes, e nas quais, aliás, é legítimo não esperar grande utilidade da existência dos serviços de mediação. A maior ou menor complexidade das causas (que, aliás, pode variar muito dentro do mesmo tipo de causas) não é argumento que permita esquecer a razão de ser desta exclusão.
4. O acórdão considera ainda que é mais consentânea com a finalidade da criação dos julgados de paz e com a sua organização interna a não exclusividade da sua competência. Não discuto que os julgados de paz foram criados com o objectivo de fomentar a participação dos interessados e a resolução dos litígios por acordo; não creio é que daí se possa retirar qualquer conclusão quanto à questão da competência.
Em primeiro lugar, porque o recurso à mediação é facultativo, e depende do acordo de ambas as partes.
Em segundo lugar, porque a lei de processo civil, por exemplo, determina por diversas vezes que se proceda a tentativas de conciliação, sem que haja qualquer incongruência com a circunstâncias de as causas correrem em tribunais judiciais.
O que de todo não posso aceitar é que, dentro da perspectiva de que a intervenção dos julgados de paz é facultativa, se admita que a mesma fique dependente da vontade exclusiva do autor, não se exigindo acordo do réu, por violação do princípio da igualdade no acesso à justiça.
5. Também não encontro qualquer anomalia na previsão de, verificadas certas condições, haver recurso para os tribunais judiciais de primeira instância. Parece-me, aliás, mais adequado que o recurso seja interposto para estes tribunais, tendo em conta o valor máximo das causas que os julgados de paz podem julgar; quanto a passarem para a ordem dos tribunais judiciais, não é inédito, basta pensar nos recursos interpostos de decisões de tribunais arbitrais.
6. Finalmente, considero que, não tendo suporte na lei (literal, sistematica e teleologicamente interpretada, naturalmente) a conclusão de que a competência material dos julgados de paz não exclui a dos tribunais judiciais a quem incumbiria julgar as causas que a lei lhes atribui, ela implicaria um julgamento de inconstitucionalidade das normas contidas no artigo 9º da Lei nº 78/2001 quando interpretadas no sentido de que atribuem competências exclusivas aos julgados de paz, nomeadamente por violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais, ou do princípio da igualdade, conjugados ou não (artigos 20º e 13º da Constituição).
Poder-se-iam utilizar vários argumentos para chegar a essa conclusão, que eu apenas exemplifico sem que, com isso, os esteja a subscrever: a circunstância de serem compostos por juízes não integrados na magistratura judicial, com todas as implicações que daí possam decorrer; as regras de processo aplicáveis, eventualmente demasiado simplificadoras (note-se, não tão diferentes do actual ou do passado processo sumaríssimo, ou da acção especial para o cumprimento de obrigações pecuniárias prevista no Decreto-Lei nº 269/98, de 1 de Setembro); a quebra da igualdade entre os que seriam obrigados a litigar nos julgados de paz e aqueles que o não seriam, por não existir um julgado de paz competente (o que colocaria, por exemplo, a questão de saber se é aceitável a existência de diferentes graus de especialização dos tribunais judiciais nas diversas circunscrições, ou da aprovação de regimes experimentais aplicáveis apenas em certas zonas); ou da inconsistência do nexo relevante para determinar a competência dos julgados de paz (mas a verdade é que as regras de competência territorial são semelhantes às que constam do Código de Processo Civil)"
.

Etiquetas: , ,

quarta-feira, maio 30, 2007

Jurisprudência do STJ (parte 2 de 2)

1) Acórdão de 17-05-2007, proferido no processo n.º 07B1286:
"A faculdade de proferir acórdão por remissão pelo Supremo Tribunal de Justiça, prevista no art. 713.º, 5 do CPC, tem plena aplicação, mesmo no caso de o acórdão da Relação já ter usado dessa faculdade.
Ter entendimento contrário seria subalternizar o STJ, impondo-lhe um ónus – fundamentação própria repetitiva – que se não impõe ao Tribunal hierarquicamente inferior".

Nota - Esta hipótese, em que o recorrente repete, na revista, precisamente as alegações de apelação foi já analisada aqui no blog (cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-03-2007, proferido no processo n.º 06A4002, e a anotação que sobre ele deixei neste post anterior). Existem, no essencial, três correntes jurisprudenciais. Uma defende que a repetição das alegações implica a deserção do recurso; outra que justifica o uso da faculdade de decidir por remissão; a terceira, variante desta última, no entanto, entende que essa faculdade remissiva não é possível nos casos em que a própria Relação já a utilizou.
No texto anterior já referido, enumerei algumas decisões que se inscrevem nas duas primeiras correntes (sendo que a decisão anotada alinha pela segunda, tal como, por exemplo, os acórdãos do mesmo tribunal de 27-03-2007, já citado, de 31-10-2006, proferido no processo n.º 06A3431 e de 03-10-2006, proferido no processo n.º 06A2993).
Quanto à terceira posição (segundo a qual o uso da faculdade remissiva pelo STJ não é possível nos casos em que a própria Relação já a utilizou), pode ser encontrada nos acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 22-06-2006, proferido no processo n.º 06B1346, de 11-12-2003, proferido no processo n.º 03A3797, de 21-12-2005, proferido no processo n.º 05B2188, e de 14-09-2006, proferido no processo n.º 06B2645.
Sobre a possibilidade de decidir por remissão, o que escrevi aqui (em anotação ao acórdão do STJ de 13-03-2007, proferido no processo n.º 07A316). No sentido de que a decisão por remissão tem de ser unânime, cfr. acórdão do STJ de 14-03-2007, proferido no processo n.º 06S2705 (e a anotação que a ele deixei aqui).



2) Acórdão de 17-05-2007, proferido no processo n.º 07B1309:
"Os privilégios creditórios imobiliários gerais não se consubstanciam em garantias reais de cumprimento de obrigações por não incidirem sobre imóveis certos e determinados, só funcionando como causa de preferência legal de pagamento.
O conflito entre a garantia especial de cumprimento obrigacional decorrente de privilégio creditório imobiliário geral e de hipoteca é legalmente resolvido por via da aplicação do disposto no nº 1 do artigo 749º e não do que se prescreve no artigo 751º, ambos do Código Civil.
O direito de crédito garantido por hipoteca prevalece na graduação em relação ao produto do prédio apreendido para a massa falida sobre o direito de crédito dos trabalhadores garantido por privilégio imobiliário geral".

Nota - Sobre o tratamento que o Tribunal Constitucional tem reservado à relação de preferência da hipoteca sobre o privilégio imobiliário geral e vice-versa, cfr. este post anterior, na parte em que se anota o acórdão do Tribunal Constitucional n.º 284/2007 e n.º 287/2007. Cfr. ainda, em particular, este post (anotação ao terceiro acórdão), e ainda este, e este.
Como já referi no texto que se encontra na primeira ligação, tanto se encontram hipóteses, na jurisprudência, em que a hipoteca preferiu ao privilégio imobiliário geral como hipóteses opostas.
Resumidamente, entendeu o STJ, na vigência do CPEREF, que:
- o privilégio imobiliário geral em benefício da administração fiscal previsto no Código do IRS poderia sobrepor-se à penhora, mas não à hipoteca - cfr. acórdão de 27-03-2007, proferido no processo n.º 07A760, bem como a anotação que a ele deixei aqui, e ainda a nota que sobre a mesma matéria deixei aqui, em anotação ao acórdão do Tribunal Constitucional n.º 231/2007, e ainda o acórdão do STJ de 22-03-2007, proferido no processo n.º 07P580;
- os créditos dos trabalhadores garantidos por privilégio imobiliário geral, graduavam-se acima dos devidos à segurança social e garantidos por hipoteca legal - cfr. acórdão de 14-12-2006, proferido no processo n.º 06A1984;
- o privilégio imobiliário geral que garante os créditos dos trabalhadores não se sobrepunha à hipoteca - cfr. acórdãos de 21-09-2006, proferido no processo n.º 06B2871, de 08-11-2005, proferido no processo n.º 05A2355, de 25-10-2005, proferido no processo n.º 05A2606 (com um voto de vencido), de05-02-2002, proferido no processo n.º 01A3613, e de 12-06-2003, proferido no processo n.º 03B1550. Contra (antes da Lei n.º 96/2001, de 20 de Agosto), cfr. acórdão de 18-11-1999, proferido no processo n.º 99B848.



3) Acórdão de 17-05-2007, proferido no processo n.º 07B1379:
"A uniformização da jurisprudência opera por via do recurso de revista ou de agravo na segunda instância ampliado com a intervenção no julgamento do plenário dos juízes das secções cíveis, inexistindo para o efeito recurso autónomo.
É pressuposto do funcionamento do nº 4 do artigo 678º do Código de Processo Civil que da decisão concernente não caiba recurso do acórdão da Relação por motivo diverso da insuficiência do valor da causa no confronto com o da alçada do tribunal.
A limitação que decorre do nº 4 do artigo 678º do Código de Processo Civil não é afectada pela circunstância cumulativa de não ser admissível recurso para o Supremo Tribunal de Justiça por virtude do disposto no nº 4 do artigo 111º do Código de Processo Civil.
Excluídos os recursos fundados na violação das regras de competência absoluta do tribunal, na ofensa do caso julgado e no excesso de valor da causa face ao da alçada do tribunal recorrido, a admissibilidade de recurso de agravo para o Supremo Tribunal de Justiça depende de o valor da causa ser superior ao da alçada da Relação, pretenda ou não o recorrente a uniformização da jurisprudência".

Nota - Sobre o n.º 4 do artigo 678.º, cfr. o quarto acórdão anotado ontem (acórdão do STJ de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B1480) e a jurisprudência ali referida.

terça-feira, maio 29, 2007

Jurisprudência do STJ (parte 1 de 2)

1) Acórdão de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07A1528:
"O exercício, ou não, pela Relação dos poderes das alíneas a), b) e c) do nº 1 do artigo 712º do CPC é incensurável pelo STJ sendo a respectiva decisão irrecorrível.
O STJ é essencialmente um Tribunal de revista, vocacionado para a uniformização de jurisprudência.
O uso da faculdade do nº 3 do artigo 729º do CPC é excepcional e dela só pode lançar-se mão se se concluir pela existência de contradições essenciais, desconsideração do alegado pelas partes ou matéria de conhecimento oficioso, tudo em pontos de facto, sem cuja eliminação, consideração ou esclarecimento fique comprometida a decisão final.
A redacção do artigo 690º-A do CPC introduzida pelo Decreto-Lei nº 183/2000 de 18 de Agosto, dispensa o recorrente, que impugna a matéria de facto, de proceder à transcrição das passagens da gravação em que se funda, mas impõe-lhe a indicação dos pontos concretos da matéria de facto que considera incorrectamente julgada que deve constar da alegação, nos termos do nº 1, alínea a) do artigo 690º A do CPC, sob pena de rejeição do pedido de reapreciação
"
.

Nota - A primeira conclusão que não impede, porém (como a decisão anotada expressamente admite) que o STJ sindique o mau uso dado ao n.º 2 do artigo 712.º do CPC (designadamente por infracção das normas que regem a força probatória dos vários meios de prova). No que toca e este ponto, bem como ao uso, pelo STJ, da faculdade prevista no n.º 3 do artigo 729.º do CPC (ordenar a ampliação da matéria de facto), cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 08-05-2007, proferido no processo n.º 07A759, e a anotação que a ele deixei aqui.
Sobre o ónus previsto no artigo 690.º-A do CPC, cfr. os acórdãos do STJ
de 10-05-2007, proferido no processo n.º 06B1868 (e a nota que a ele deixei aqui), do Tribunal da Relação de Coimbra de 13-03-2007, proferido no processo n.º 1877/03.3TBCBR.C1 (e a nota que a ele deixei aqui), e de 08-11-2006, proferido no processo n.º 06S2455 (e a nota que a ele deixei aqui).


2) Acórdão de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07A1655:
"Para que possa formar-se maioria, o acórdão da secção deve culminar com, pelo menos, dois votos concordantes, quer quanto à decisão, quer quanto à fundamentação.
Se um dos adjuntos vota vencido e o outro apenas vota a decisão o presidente da secção deve intervir para desempatar nos termos do nº 5 do artigo 709º do Código de Processo Civil.
Não apresentando dois votos concordantes quanto à fundamentação e quanto à decisão, o Acórdão é nulo por não ter o necessário vencimento, nulidade não suprível nos termos do nº 1 do artigo 731º CPC que apenas admite o suprimento no caso do acórdão ser lavrado contra o vencido.
Face ao artigo 716º CPC a nulidade resultante de falta de vencimento não é de conhecimento oficioso.
O requerente de prestações por morte de beneficiário da Segurança Social que com ele vivia tem de alegar e provar a situação de união de facto, há mais de dois anos, à data da morte; a necessidade de alimentos; a impossibilidade de obter alimentos da herança do falecido ou das pessoas elencadas nas alíneas a) a d) do artigo 2009º do Código Civil"
.

Nota - Interessantíssimo (e espécime raro) é este acórdão, que se pronuncia sobre a função e os efeitos processuais dos votos de vencido e dos votos que apenas abrangem a decisão.
A nulidade não foi declarada, por se ter entendido não ser de conhecimento oficioso.
Sobre este tema do sentido e efeitos dos votos de vencido e dos votos que apenas abrangem a decisão o acórdão anotado cita um outro, do mesmo tribunal, de 20 de Março de 1974, in BMJ n.º 235, pág. 181, segundo o qual "a ausência de dois votos concordantes quanto à fundamentação gera a nulidade do Acórdão" (apesar de ter concluído pelo conhecimento oficioso da nulidade - no entanto, este encontra fundamento no processo penal, como era o caso).
No entanto, há mais contributos, ainda que raros, para este tema, na jurisprudência constitucional.
No acórdão do Tribunal Constitucional
n.º 464/94, de 28-6-1994 (também in BMJ n.º 438, pág. 128), decidiu-se o seguinte:
"I – Muito embora uma declaração de voto de um juiz faça parte integrante da decisão tomada em sede de tribunais funcionando colegialmente, não é ela, seguramente, contribuitiva, ou para a formação da maioria que vai expressar o conteúdo decisório, ou para a maioria na qual se ancora a fundamentação que conduz à decisão. II – Essa declaração representa, antes e tão-só, o ponto de vista do juiz emitente, e não a óptica do juízo decisório do tribunal ou a corte de razões que a ele levou. Neste contexto, não pode tal declaração ser perspectivada como decisão de um tribunal. III – Sendo assim, e porque o recurso das alíneas a) do nº 1 do artigo 280º da Lei Fundamental e a) do nº 1 do artigo 70º da Lei nº 28/82 tem, necessariamente, de ser interposto de uma decisão judicial, ponderando que na decisão tomada pelo acórdão recorrido não houve recusa de aplicação de qualquer normativo com fundamento num juízo de desconformidade com o diploma básico, torna-se claro inexistir um dos respectivos pressupostos – justamente o da recusa de aplicação de uma norma numa decisão de um tribunal. IV – Acresce que, tendo o recurso de constitucionalidade uma natureza instrumental, a decisão eventualmente a tomar pelo Tribunal Constitucional quanto à questão de inconstitucionalidade suscitada na declaração de voto do juiz vencido, e ainda que concluísse pela existência de um tal vício na norma ínsita no nº 2 do artigo 372º do Código de Processo Penal, não teria qualquer repercussão no decidido no acórdão recorrido. V – Sendo a junção de uma declaração de voto na sentença proferida pelo tribunal colectivo um acto proibido por lei (artigo 372º, nº 2, do Código de Processo Penal), na hipótese de junção, seguramente se haverá de proporcionar aos interessados um meio de reacção, de molde a poder provocar, sobre ela, uma decisão daquele tribunal, decisão essa que, após ser tomada, poderá ser impugnada pelos meios legais, designadamente, se for caso disso, por intermédio de recurso visando a fiscalização concreta da constitucionalidade normativa".
E no acórdão do mesmo Tribunal n.º 58/95, de 16-02-1995, in BMJ, n.º 446 (suplemento), pág. 342, considerou-se o seguinte (podendo a segunda conclusão adaptar-se perfeitamente ao processo civil):
"I – Muito embora na Lei nº 28/82 não exista norma específica que preveja a arguição de nulidades de acórdão tirado pelo Tribunal Constitucional em sede de fiscalização abstracta da constitucionalidade, preventiva ou sucessiva, é admissível tal arguição, nos termos genericamente previstos no ordenamento adjectivo comum, relativamente a decisões insusceptíveis de recurso. II – Quando o nº 2 do artigo 42º da Lei nº 28/82 estabelece que a decisão é tomada por maioria, deve entender-se que a votação tem de incidir – e a maioria formar-se – tanto sobre a decisão propriamente dita como sobre os fundamentos que a ela conduzem. III – Quando, em sede de fiscalização preventiva, se equacionam diversos possíveis fundamentos da inconstitucionalidade – de índole formal e material – deve o Tribunal compartimentar cada uma destas questões, autonomizando-as e, em consequência, tomando, relativamente a cada uma delas, a sua decisão, só se pronunciando pela verificação de cada um dos tipos de inconstitucionalidade em causa quando se alcance uma maioria de votos no sentido de esse concreto vício se ler por assente. IV – Na verdade, só assim será possível dar ao legislador a indicação precisa sobre o procedimento a adoptar com vista à expurgação das normas julgadas inconstitucionais".


3) Acórdão de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07A979:
"As Relações não podem, com fundamento em presunções judiciais, alterar as respostas aos quesitos ou aos pontos da base instrutória, nomeadamente considerando provados por inferência factos que a 1ª instância deu como não provados após contraditório e imediação da prova produzida.
Podem as Relações tirar ilações da matéria de facto, mas desde que não alterem os factos provados, antes neles se baseando de forma a que os factos presumidos sejam consequência lógica daqueles.
O S.T.J., embora não possa recorrer a presunções judiciais, pode censurar o seu uso pela Relação sempre que feito em condições irregulares, quer quanto aos pressupostos, quer quanto ao concreto raciocínio efectuado, nomeadamente atendendo à circunstância de o facto presumido nem sequer ter sido articulado"
.

Nota - Tem esta decisão a virtude de introduzir alguma moderação (que se tem revelado, por vezes, necessária) no uso das presunções judiciais pelos tribunais da Relação.
Sobre presunções judiciais já escrevi bastante neste blog (
cfr. aqui a ligação à busca pela categoria "presunção judicial"). Em particular, sobre a possibilidade de controlo, pelo STJ, do uso, pelas Relações, de presunções judiciais, cfr. o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27-03-2007, proferido no processo n.º 06A4002 (e a anotação que a ele deixei aqui). O Supremo Tribunal de Justiça não pode sindicar o simples uso ou não uso da presunção judicial, embora possa controlar, como aqui o fez, um uso que se traduza na alteração das respostas dadas à matéria de facto - cfr., neste sentido, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 05-07-1984, proferido no processo n.º 071754, de 03-11-1992, proferido no processo n.º 082011, de 09-03-1995, proferido no processo n.º 086250, de 26-09-1995, proferido no processo n.º 087078, de 31-10-1995, proferido no processo n.º 087288 (estes dois últimos com um voto de vencido), de 20-01-1998, proferido no processo n.º 97A460, 09-07-1998, proferido no processo n.º 98B430, de 07-07-1999, proferido no processo n.º 99A588, de 20-06-2000, proferido no processo n.º 00A407, de 19-03-2002, proferido no processo n.º 02B656, de 10-02-2003, proferido no processo n.º 03B1837, de 15-02-2005, proferido no processo n.º 04A4577, e de 07-11-2006, proferido no processo n.º 06A3564.
Em particular para a definição de presunção judicial, cfr. a nota ao
acórdão do STJ de 05-12-2006, proferido no processo n.º 06A3883, que deixei aqui.


4) Acórdão de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B1480:
"O recurso previsto no n.º 4 do art. 678.º do CPC, só é admissível, quando não o for por motivo estranho à alçada do tribunal, se cumulativamente for admissível em razão da alçada".

Nota - Cfr., no mesmo sentido, os acórdãos de 24-05-2007, proferido no processo n.º 07B1215, e de 17-05-2007, proferido n.º processo n.º 07B1379.
Sobre os requisitos dos recursos especiais previstos no artigo 678.º do CPC, cfr. o acórdão do STJ
de 15-06-2005, proferido no processo n.º 04S3167.

Etiquetas: , , , , ,

segunda-feira, maio 28, 2007

Jurisprudência constitucional

1) Pelo acórdão n.º 312/2007, o Tribunal Constitucional entendeu que o montante da pensão de velhice pode ser afectado para fins de cumprimento da obrigação de alimentos, desde que o valor disponível para o pensionista, depois de deduzido o montante da obrigação alimentar, não seja inferior ao rendimento social de inserção. Aconselho a leitura do voto de vencido (quanto à fundamentação, não quanto à decisão) do conselheiro Cura Mariano, traçando uma distinção entre o pagamento das prestações vencidas e o das vincendas.

2) Pelo acórdão n.º 311/2007, foi julgado inconstitucional o artigo 39.º do Decreto-Lei n.º 67/97, de 3 de Abril, na interpretação segundo a qual o presidente da direcção, o presidente do conselho fiscal ou o fiscal único, o director responsável pela área financeira e os directores encarregados da gestão de certos clubes desportivos (mencionados no artigo 37.º daquele diploma) são responsáveis, pessoal, ilimitada e solidariamente, pelo pagamento ao credor tributário ou às instituições de segurança social das quantias que, no respectivo período de gestão, deixaram de entregar para pagamento de impostos ou da segurança social. Tratou-se aqui de inconstitucionalidade orgânica, por falta de autorização legislativa da A.R. ao Governo (mais precisamente, por insuficiência, quanto a este ponto, da lei de autorização).

3) Como em outro post (ver aqui) já tinha assinalado, o Tribunal Constitucional, no acórdão n.º 255/2007, julgou inconstitucional "por violação do nº 1 do artigo 20º, em conjugação com o artigo 18º, um e outro da Lei Fundamental, a norma vertida na alínea o) do nº 1 do artº 6º do vigente Código das Custas Judiciais, na parte em que tributa em função do valor da causa principal a impugnação judicial de decisão administrativa sobre a concessão de apoio judiciário". Naquele outro texto dei conta da fundamentação da decisão. Agora, o mesmo juízo repetiu-se no acórdão n.º 299/2007, que, com os mesmos fundamentos, novamente julgou inconstitucional aquela norma.

4) Tenho analisado, aqui no blog, a jurisprudência que se ocupa da (in)constitucionalidade do regime dos privilégios imobiliários - cfr., em particular, este post (anotação ao terceiro acórdão), e ainda este, e este. Quase sempre, a questão colocava-se quanto à prevalência de certos privilégios sobre a hipoteca.
Recentemente, o problema é levantado "às avessas" pelos beneficiários de privilégio imobiliário geral, que o vêem ceder face à hipoteca. Especificamente quanto aos créditos laborais garantidos por privilégio imobiliário geral (que o Tribunal Constitucional admitiu, anteriormente, poderem sobrepor-se ao crédito hipotecário - cfr. acórdão n.º 498/2003), houve recentemente que apreciar a constitucionalidade da intepretação segundo a qual a hipoteca prefere ao dito privilégio. Quanto a esta matéria, o Tribunal Constitucional, nos acórdãos n.º 284/2007 e n.º 287/2007, conclui pela não inconstitucionalidade do artigo 12º da Lei nº 17/86, de 14 de Junho, na interpretação segundo a qual o privilégio imobiliário geral de que gozam os créditos dos trabalhadores não prefere à hipoteca anteriormente registada, por referência aos artigos 2º e 59º, nºs 1, alínea a), e 3, da Constituição da República Portuguesa, essencialmente por considerar que, da conclusão de que o privilégio imobiliário geral dos trabalhadores pode preferir à hipoteca, "não decorre a obrigação constitucional de a lei ordinária conferir obrigatoriamente aos créditos laborais uma prevalência sobre crédito garantido por uma hipoteca anteriormente registada".

Etiquetas: , , ,

domingo, maio 27, 2007

Jurisprudência constitucional - eleições intercalares de Lisboa

O acórdão do Tribunal Constitucional n.º 318/2007, sobre o despacho de designação da data para as eleições intercalares em Lisboa encontra-se aqui.

Jurisprudência do Tribunal da Relação do Porto

1) Acórdão de 09-05-2007, proferido no processo n.º 0646850:
"Quando for requerido apoio judiciário, na modalidade de nomeação de patrono (art. 15º, c), da Lei 30-E/2000, de 20-12), com vista à propositura de uma acção, esta considera-se proposta na data em que for apresentado o pedido de nomeação de patrono (art. 34º, 3, da referida Lei 30-E/2000).
Assim, tendo sido requerida a nomeação de patrono, para propositura de uma acção onde é pedida a condenação da ré na indemnização por despedimento e diversas quantias a título de créditos salariais devidos, a prescrição de tais direitos considera-se interrompida decorridos que sejam cinco dias sobre esse requerimento, se a falta de citação da ré, nesse período temporal, não for imputável ao autor (art. 323º, 1 e 2 do C. Civil)
"
.

Nota - Esta posição é maioritária na jurisprudência, quer na vigência da actual lei do apoio judiciário, quer na vigência da anterior, embora existam algumas decisões que consideram que o prazo se interrompe com o pedido de apoio e não cinco dias depois. Esta última corrente não é, em minha opinião, de subscrever, pois a lei do apoio judiciário apenas prevê que a acção se considera proposta na data de apresentação do pedido. Ora, a interrupção da prescrição não é um efeito da propositura, mas sim da citação, podendo antecipar-se, nos termos do artigo 323.º, n.º 2 do CC, precisamente para o quinto dia posterior à propositura.
Praticamente unânime é o entendimento segundo o qual só o pedido de apoio na modalidade de nomeação de patrono tem este efeito, não o tendo os pedidos nas restantes modalidades.
O rol de decisões a este respeito (quer sobre o momento da interrupção da prescrição, quer sobre a modalidade de apoio que a ela dá origem) é muito vasto - cfr., a título de exemplo, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
de 29-11-2006, proferido no processo n.º 06S1956, de 15-02-2006, proferido no processo n.º 05S3375, de 24-11-2004, proferido no processo n.º 04S1902, do Tribunal da Relação do Porto de 26-04-2004, proferido no processo n.º 0411164, de 03-10-2005, proferido no processo n.º 0511437 (este, contra a corrente maioritária, considerando que a interrupção da prescrição se dá no dia do requerimento e não cinco dias depois, contando embora com um voto de vencido), de 13-06-2005, proferido no processo n.º 0416559, de 18-10-2004, proferido no processo n.º 0410795 (este, à semlhança do de 03-10-2005, considerando que a interrupção da prescrição se dá no dia do requerimento e não cinco dias depois), de 08-07-2004, proferido no processo n.º 0441161 (idem, com um voto de vencido), de 17-11-2003, proferido no processo n.º 0240811, de 27-10-2003, proferido no processo n.º 0314298, do Tribunal da Relação de Lisboa de 17-01-2007, proferido no processo n.º 9401/2006-4, de 06-02-2002, proferido no processo n.º 00108404, de 16-01-2002, proferido no processo n.º 0092404 (este considerando que, apesar da aplicação da regra dos cinco dias, se o réu não for efectivamente citado no prazo de um ano a contar de tal interrupção, ocorre a prescrição, o que me parece duvidoso), do Tribunal da Relação de Coimbra de 16-02-2005, proferido no processo n.º 3685/04 (este considerando que a interrupção se dá no dia da apresentação do requerimento), e de de 28-01-2003, proferido no processo n.º 3884/02.


2)
Acórdão de 21-05-2007, proferido no processo n.º 0752000:
"Relativamente à apreensão de bens realizada em processo especial de recuperação de empresa e da falência, não é admitida a dedução de embargos de terceiro, sejam estes com função repressiva ou mesmo preventiva".

Nota - No mesmo sentido, cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
de 09-10-2006, proferido no processo n.º 06A2868 (na fundamentação - a questão não surge no sumário), de 14-01-1993, proferido no processo n.º 083081, de 23-04-2002, proferido no processo n.º 02A818, de 22-09-1994, proferido no processo n.º 084446, do Tribunal da Relação do Porto de 16-12-2004, proferido no processo n.º 0436633, de 20-02-2003, proferido no processo n.º 0330461, de 12-11-2001, proferido no processo n.º 0151198, de 19-10-2006, proferido no processo n.º 7566/2006-8, e de 24-11-1992, proferido no processo n.º 0058341.
A argumentação é também uniforme, assentando essencialmente na existência, no processo de falência (e, agora, também no de insolvência) de meios próprios para que os terceiros possam reagir à apreensão.
Não me choca, porém, atendendo ao facto de a questão ser, essencialmente, semelhante na execução singular e na execução universal (ou seja, estará sempre em causa a titularidade de um direito incompatível com a apreensão), que o juiz possa aproveitar o requerimento ou, pelo menos, convidar o terceiro a aperfeiçoá-lo.


3)
Acórdão de 09-05-2007, proferido no processo n.º 0751543:
"Os Tribunais competentes para conhecer dos processos especiais de interdição são, na comarca do Porto, as Varas Cíveis".

Nota - É esta a jurisprudência maioritária (e mais acertada a meu ver), como já anteriormente referi, desenvolvendo este problema aqui no blog - cfr.
este post anterior.


4)
Acórdão de 09-05-2007, proferido no processo n.º 0751336:
"Na ausência de correspondente acordo de todos os interessados, a partilha, mesmo depois de transitada em julgado a sentença, pode ser emendada, se tiver havido erro de facto na descrição ou qualificação dos bens ou qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes.
A correspondente acção deve ser proposta dentro de um ano, a contar do conhecimento do erro, contanto que este seja posterior à sentença.
Para poder relevar, nesta óptica, o mencionado erro-vício deve caracterizar-se genericamente, por essencialidade e propriedade, exigindo-se ainda, especificadamente, quando reportado ao objecto do negócio, que os demais interessados conhecessem ou não devessem ignorar a essencialidade, para o declarante, do elemento sobre que o mesmo incidiu"
.

Nota - O acórdão parte da distinção, colhida em Lopes Cardoso (“Partilhas Judiciais”, 3ª Ed., Vol. II, pags. 523 e segs.), entre o erro na descrição e o erro que constitui vício da vontade: "a lei processual reporta-se a dois aspectos distintos do erro de facto causal da emenda da partilha: por um lado, o erro de facto na descrição ou qualificação dos bens; por outro lado, qualquer outro erro susceptível de viciar a vontade das partes. No primeiro caso, os erros operam por si mesmos, não se tornando necessário alegar e provar quaisquer outros requisitos para, com base neles, peticionar a emenda, porquanto viciam gravemente o objectivo que a partilha se propõe alcançar; no segundo caso, torna-se mister alegar e provar os requisitos gerais e especiais desse erro, nos precisos termos dos arts. 247º e segs. do CC, sendo certo que “erro susceptível de viciar a vontade das partes” é uma fórmula muito ampla que abrange uma generalidade de erros".
É este o entendimento dominante na jurisprudência - cfr. os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça
de 19-02-2004, proferido no processo n.º 03A4140, de 03-06-2003, proferido no processo n.º 03A1607 (sobre a diferença entre a emenda e a anulação da partilha), de 17-12-2002, proferido no processo n.º 02A3669 (centrando-se, porém, este mais na anulação do que na emenda), de 08-07-1997, proferido no processo n.º 97A154 (no sentido de que não há lugar a emenda no caso de indevida inclusão de bens), de 09-03-2004, proferido no processo n.º 04A391 (legitimidade na acção de emenda), de 25-01-1983, proferido no processo n.º 070489, de 24-09-1992, proferido no processo n.º 082157 (sobre a relevância do erro), de 07-10-1993, proferido no processo n.º 082644, de 26-04-1988, proferido no processo n.º 076019 (erro na transcrição da acta pelo funcionário), de 12-01-1973, proferido no processo n.º 064288 (erro por desconhecimento por completo da extensão, natureza, caracteristicas e valor dos bens da herança), do Tribunal da Relação do Porto de 19-01-1998, proferido no processo n.º 9751111, de 15-04-1997, proferido no processo n.º 9620181 (erro de julgamento, na partilha), de 01-10-1996, proferido no processo n.º 9620620 (competência para emenda de partilha após divórcio), de 31-10-1994, proferido no processo n.º 9430424 (legitimidade na acção de emenda), de 29-05-1990, proferido no processo n.º 0225105 (distinção entre emenda e simples rectificação de descrição de um bem), de 18-04-1993, proferido no processo n.º 9210999 (considerando os requisitos da emenda aplicáveis à anulação de licitações), de 14-05-1991, proferido no processo n.º 9050622 (distinção entre emenda da partilha e recurso da sentença homologatória), do Tribunal da Relação de Lisboa de 10-05-2000, proferido no processo n.º 0002043 (distinção entre emenda e simples rectificação de descrição de um bem), do Tribunal da Relação de Coimbra de 14-12-2000, proferido no processo n.º 2819/99 (relevância do momento do erro), e do Tribunal da Relação de Guimarães de 16-04-2004, proferido no processo n.º 939/04-1 (relevância do erro).

Etiquetas: , , , , , , , ,

sábado, maio 26, 2007

Aos meus alunos - notas e jurisprudência sobre a fase de instrução

Os temas desenvolvidos na aula prática de ontem são muito discutidos na jurisprudência. Os casos práticos foram, como habitualmente, adaptados de hipóteses reais. Aqui ficam elas, com uma nota breve sobre o que está em causa em cada uma delas.

1) A primeira hipótese era relativamente simples, versando sobre o uso de testemunhas para prova da simulação entre os simuladores. O caso foi adaptado a partir dos factos constantes do relatório do acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 25-10-2005, proferido no processo n.º 0524564. Aqui se entendeu - seguindo, aliás, a jurisprudência maioritária, que se apoia num estudo do professor Vaz Serra sobre a matéria, que pode ler-se no ano 107 da RLJ - que "I- A prova testemunhal não será admissível como único elemento probatório para comprovação do acordo simulatório. II- Mas já poderá ser utilizada se existir qualquer documento que, só por si, torna verosível a existência da simulação e com ela se tiver em vista interpretar e/ou completa a prova documental. III- A impossibilidade da nulidade da simulação contra o terceiro de boa fé tanto vale para os terceiros adquirentes a título oneroso, como os adquirentes a título gratuíto."

2) A segunda hipótese, correspondente ao segundo caso prático de ontem, é muito frequente, na prática, mas, apesar disso, não há consenso na jurisprudência quanto à melhor solução. A questão central é a seguinte: se, numa escritura de compra e venda, o vendedor declarar já ter recebido a totalidade do preço, poderá produzir prova testemunhal para provar que tal não ocorreu, exigindo do comprador a parte do preço em falta?
Num extremo, encontramos decisão nas quais tal prova se admite com muita facilidade, como é o caso do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19-04-2005, proferido no processo n.º 05A416.
Lendo apenas esta decisão (ou outras na mesma linha, como, por exemplo, o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 05-04-1990, proferido no processo n.º 0031132), ficaríamos convencidos da simplicidade do problema. Mas ele não é assim tão simples.
Duas grandes dificuldades se levantam ao uso de prova testemunhal, neste caso. Por um lado, pretende-se fazer prova contra o conteúdo de um documento autêntico, o que se proíbe no n.º 1 do artigo 394.º do CC. Não serve de argumento contra esta proibição a circunstância de a veracidade da declaração não estar a coberto da força probatória plena da escritura - são questões diferentes. O n.º 1 do artigo 394.º do CC tem um campo autónomo, para além dos factos a coberto da força probatória plena da escritura. Aliás, nem faria sentido que o seu objecto se limitasse a estes, pois, nesse caso, estaria apenas a reproduzir o disposto no n.º 2 do artigo 393.º do CC ("Aplica-se, pois, este artigo apenas às convenções contrárias aos documentos na parte em que estes não têm força probatória plena" - PIRES DE LIMA / ANTUNES VARELA, em anotação à norma, no Código Civil anotado, Coimbra, Coimbra Editora, págs. 341/342).
Mas imaginemos que, interpretando restritivamente a mesma norma, na esteira de Vaz Serra, ultrapassamos esta primeira dificuldade porque, no caso concreto, existe um indício de prova documental contra a escritura.
Ainda assim, existe outro obstáculo: a declaração de recebimento pode valer como confissão extrajudicial, contra a qual, por fazer prova plena contra o confitente, não é possível produzir prova testemunhal, nos termos do artigo 393.º, n.º 2 do CC. Esta é a tese que se encontra no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-1999, proferido no processo n.º 99B247. Este acórdão é um bom exemplo, pois a dificuldade da questão manifesta-se pela não unanimidade, sendo patente no voto de vencido a ela aposto, onde se defende posição oposta. No entanto, para que esta última posição possa valer, terá que desembaraçar-se devidamente do argumento da confissão extrajudicial.
Por essa razão é que se encontra jurisprudência defendendo que a simples declaração de ter recebido o preço é meramente formal, não valendo como confissão - é por este caminho que envereda o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 27-01-2004, proferido no processo n.º 2669/03, onde se defende que "I -A escritura de compra e venda é um documento autêntico que faz prova plena dos factos como praticados pelo notário (art. 363ºe 371.º do CC). II – A declaração do vendedor de já ter sido recebido o preço da venda, é uma mera declaração de um facto sem qualquer propósito confessório da realidade desse facto, sendo, por isso, admissível a demonstração/impugnação através de prova testemunhal, da inexactidão dessa declaração, por inaplicação, ao caso, do disposto no n.º 2 do art. 393.º do CC". A conclusão é, essencialmente, a mesma a que chegam, com argumentos ligeiramente diversos daquele, os acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-06-2005, proferido no processo n.º 05B1417 e de 09-06-2005, proferido no processo n.º 05B1417.
Entre a posição mais restritiva do citado acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 02-06-1999, proferido no processo n.º 99B247 e as restantes, mais permissivas, estão os senhores alunos em posição de optar por qualquer uma delas, desde que o façam justificadamente.

3) O terceiro caso é mais simples e destina-se apenas a lembrar que nem sempre os fenómenos que, na linguagem comum, designamos como de "falsidade" correspondem ao conceito jurídico de falsidade.
Tomando como exemplo uma escritura pública, ela só será falsa se: (i) o notário documentou declarações diferentes das que foram proferidas (A declarou vender X mas o notário lavrou o documento como se ele houvesse declarado vender Y); (ii) se referiu ter presenciado factos que não presenciou efectivamente (a entrega de um objecto ou a exibição de um documento, por exemplo); ou se, (iii) não tendo ocorrido nenhuma das circunstâncias anteriores, o documento foi viciado posteriormente, com um daqueles resultados. Em qualquer destes casos, a intenção é irrelevante para aplicar o regime civil da falsidade do documento.
Assim, um documento não é falso quando a declaração dele constante não é verdadeira, mas foi efectivamente proferida. Esta diferença - essencial para escolher os mecanismos de reacção à apresentação do documento - está muito bem explicada na fundamentação do acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 09-02-2006, proferido no processo n.º 05B3177, cujo sumário é o seguinte:
"1. A força probatória plena dos documentos autênticos abrange tão somente os factos (declarações ou outros) que nele são referidos como praticados pelo documentador ou como objecto da sua percepção directa.
2. Os factos abrangidos pela força probatória do documento autêntico ficam por ele plenamente provados e esta prova só é ilidível mediante a arguição e prova da falsidade (C.Civil, art. 372º, nº 1).
3. Através da acção de falsidade - acção de simples apreciação - pretende-se o acertamento ou definição dum estado de facto produtor de efeitos de direito, isto é, dum facto jurídico, e tanto basta para que, perante a existência de um documento que se pretenda falso, a acção deva ser admitida.
4. Neste tipo de acção, em que o autor pretende que se declare a existência de um facto juridicamente relevante ou de um direito, objecto de litígio, a causa de pedir reporta-se a um vício do próprio documento destinado a fazer prova do acto, isto é, assenta na respectiva falsidade, que se traduz na desconformidade entre o que se passou e declarou e o que no documento se diz ter passado ou declarado.
5. É àquele que invoca a falsidade do documento que incumbe o ónus da prova da desconformidade entre a declaração do documentador e a verificação do facto documentado.
6. Se, eventualmente, dos factos provados na acção, resulta apenas demonstrada qualquer divergência entre o que foi declarado pelo testador (ou, que é o mesmo, o que foi dito pelo notário como por ele declarado) e a sua vontade, até mesmo por falta de consciência do teor da declaração, tudo se passa já no âmbito da invalidade do negócio celebrado e não no domínio da falsidade do documento".

Boas leituras!

Etiquetas: , , ,